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A Culpa é do Fidel

Como o mundo sonhado pelos revolucionários de 1968 pode ser injusto e aborrecido para uma garotinha

24.12.2007, às 19H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H31

Os praticantes e simpatizantes que me perdoem, mas ser filho de comunista é mesmo uma enorme chatice. Explico, pedindo aos leitores licença para começar esse texto com um relato pessoal. Logo que aprendi a escrever, com pouco mais de seis anos, redigi uma história sobre a vida de Rapunzel depois do "felizes para sempre", em formato de livro ilustrado. Toda orgulhosa do meu grande feito, fui autorizada a dormir mais tarde, para mostrar a obra a meu pai quando ele chegasse. Comunista de carteirinha, ex-líder estudantil, com invasão de reitoria e exílio no currículo, ele elogiou mornamente a iniciativa e então disse que ficaria realmente orgulhoso quando eu deixasse de lado as "historietas burguesas" e me pusesse a escrever sobre famílias que plantavam e colhiam juntas, lutando por um mundo mais justo... O episódio foi apenas o primeiro de muitos e é por isso que A Culpa é do Fidel (La Faute à Fidel!), primeiro filme de ficção dirigido por Julie Gavras (filha do cineasta grego Costa-Gavras), é pontuado por momentos tão parecidos com a minha própria infância que não havia outra maneira de começar esse texto.

Aos 9 anos, Anna de la Mesa (Nina Kervel-Bey) é uma perfeita lady. Adora ensinar aos primos mais novos a maneira correta de saborear uma laranja com garfo e faca, ensaia a maneira correta de segurar uma taça de champagne e recusa-se a brincar com as outras crianças no casamento do tio por que elas só querem saber de correr. Seu pequeno universo é formado pelo colégio católico — habitado por várias outras pequenas damas como ela —, pela escola de natação e pela linda casa ajardinada onde mora com os pais, o irmão mais novo e a babá, que fugiu de Cuba após a revolução perpetrada por Fidel. Mas toda essa harmonia é quebrada com a chegada da tia e da prima de Anna, que fugiram da Espanha após o assassinato do tio, um militante contra a ditadura de Franco. O pai, vivido por Stefano Accorsi, é um advogado espanhol que vive na França desde jovem. A morte do cunhado e a efervescência política da época (o filme se passa entre 1970 e 1971) levam-no a rever seus princípios.

Ele deixa o emprego, troca a casa por um pequeno apartamento e passa a atuar como intermediário do movimento para eleger Allende presidente do Chile. A mãe, interpretada por Julie Depardieu (filha de Gerard Depardieu), deixa seu posto como jornalista da revista "burguesa" Marie-Claire para escrever um livro-reportagem em prol do direito feminino à contracepção. A babá cubana, anticomunista até o último fio de cabelo, é substituída por uma série de militantes estrangeiras, que buscam abrigo na França. Elas não têm lá grande jeito para o cargo e revolucionam o cardápio das crianças com pratos gregos e sul-americanos. O novo apartamento vive cheio de pessoas estranhas: os "barbudos" chilenos amigos de seu pai e um monte de mulheres chorosas, que dão depoimentos para o livro que mãe irá escrever. Além disso, a garota passa a dividir um beliche com o irmão François e é proibida de assistir às aulas de religião — condição colocada pelos pais para que ela pudesse permanecer no colégio católico, de onde se recusou a sair. Dividida entre a realidade conservadora da escola e a complexidade das mudanças que, acima de tudo, afastam os pais de seu dia-a-dia, Anna se rebela.

Os pais se desdobram para lhe mostrar a importância do momento histórico, ao mesmo tempo em que tentam se convencer de estarem no caminho certo. O tempo todo a pequena desafia as convicções dos militantes e, com a convivência, amplia sua visão de mundo. Adaptado livremente do romance Tutta Colpa di Fidel, da jornalista italiana Domitilla Calamai que, assim como a diretora do filme, cresceu num lar comunista, A Culpa é do Fidel é um filme bem-humorado, com tiradas inteligentes e engraçadíssimas. Mas o grande feito de Julie é retratar uma trajetória pessoal emocionante sem jamais ser piegas. A prova disso é a cena final, brilhante — que me obriga a admitir que, embora dura e aborrecida, a "infância comunista" tem o grande mérito de infundir em algumas de suas "vítimas" um senso de contestação para lá de bem-vindo.

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