Conhecida no Brasil por Corações livres (2002) e Brothers (2004), que inclusive lhe abriram as portas de Hollywood, a cineasta dinamarquesa Susanne Bier abraça o melodrama sem medo em seus filmes. Em Depois do casamento (Efter brylluppet, 2006) não é diferente.
A sem-cerimônia nórdica no trato de pesados conflitos pessoais e familiares ganha tons sociopolíticos na trama. Mads Mikkelsen (o Le Chiffre de Cassino Royale) interpreta Jacob, dinamarquês que escolheu viver na Índia, onde leciona inglês em um orfanato prestes a ser fechado. Quando um milionário dinamarquês oferece uma verba para manter o lugar funcionando, impõe uma condição: quer conhecer Jacob pessoalmente.
2
4
3
É com dificuldade que ele deixa os seus meninos indianos para se encontrar com Jørgen (Rolf Lassgård), mas é com pesar ainda maior que viaja para Copenhague. A ostentação e a frieza o incomodam. Não bastasse o retorno à capital dinamarquesa, Jacob descobre que precisará comparecer ao casamento da filha do milionário antes de fechar o patrocínio do orfanato.
No casamento, o choque: a esposa de Jørgen é uma antiga namorada de Jacob, de quem ele se separou dramaticamente há duas décadas. Segundo choque: a menina que está casando não é filha de Jørgen, mas sua enteada, e acaba de chegar aos 20 anos...
Epidérmico
Susanne Bier monta o conflito em pouco mais de três minutos - na cena em que descobrimos que a garota é filha de Jacob - com toda a dramaticidade a que se permite. Não há close-ups no cinema de hoje tão agressivos como os do diretor de fotografia de Susanne, Morten Søborg: câmera epidérmica na mão trêmula de Jacob, depois nos seus olhos, lente quase encostada na pele do ator, no seu rosto.
O que torna os filmes da diretora não apenas suportáveis, como também magnetizantes, é que essa hiperdramatização resiste ao sensacionalismo. Quando a câmera invade o espaço e a intimidade de Jacob, ou de qualquer outro personagem, não faz isso para expô-los, com a covardia de um Uma lição de amor, por exemplo. Faz isso para compreendê-los, em tom de urgência, como se fosse absolutamente momentânea e decisiva a abertura que estes personagens dão para serem entendidos.
Depois do casamento, então, pede que o espectador atente para esses instantes de contato. O momento definidor do milionário Jørgen, por sua vez, não causou boa impressão: dirigindo um jipe caro, de óculos escuros, ouvindo "It's Raining Men". A pose de Jørgen, por si só, já nos leva à antipatia, mas há o componente político: o milionário, pai por questão de bondade, simboliza o capitalismo, a benemerência, enquanto Jacob, que era pai sem saber, representa os excluídos, os incompreendidos.
Nem tudo é o que parece
O maniqueísmo parece decidido até a metade do filme. Acontece que entra uma sacada aí. A caracterização dos dois e o primeiro olhar sobre Jørgen não são definitivos. Quando achamos, no meio de tantos closes, que conhecemos os personagens, é que se dá a virada. A câmera se aproxima dos personagens, mas ainda assim não nos permite decodificá-los por inteiro - é a lição que aprendemos do meio para o fim da metragem.
Depois do casamento não é impecável. Há ali algumas soluções de roteiro (como a traição do moleque) que entram apenas para facilitar as decisões de Jacob, banalizando-as. Mas, dos três filmes de Susanne Bier que chegaram recentemente a nós, este se revela o mais cerebral justamente pela reflexão acerca do olhar. Reconhecer e discutir os seus próprios limites, enquanto linguagem, tateando para saber até que ponto a câmera-espectador tem o direito (ou o poder) de devassar personagens, é o que faz deste um melodrama único.