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O milagre se repete vinte anos depois.
Após nosso país ser um dos únicos a assistir em cinemas ao que o diretor Sergio Leone quis realmente exibir em 1984, a Warner (que tem decepcionado o mercado com lançamentos de cópias em tela cheia) comemora as duas décadas deste clássico com o mesmo caprichado DVD lançado no mercado externo.
Dupla e merecida honra para o público brasileiro que sempre entendeu e aplaudiu a obra-prima de Leone.
Até hoje é difícil acreditar como o filme não entrou para a concorrência do Oscar. Mesmo com o documentário contido nos extras do DVD, não ficam esclarecidos os problemas da produção e da sua distribuição internacional. Só no Estados Unidos, houve quatro versões. Quando anunciada a versão do diretor para o DVD, pensamos que veríamos algo muito diferente, mas não... surpresa! Exceto por algumas pequenas seqüências, é a película a que assistimos por aqui há vinte anos. No Brasil, quem diria?
Decepção? Não. O filme já era aquele (magnífico) com a edição preferida pelo diretor.
A grande recuperação atual para o mercado americano foi a montagem pensada por Leone. A produção havia sido mutilada e as cenas alinhadas em ordem cronológica, o que ironicamente estraga a idéia do diretor em contar uma história com imprescindíveis idas e vindas. Esta obra-prima só tem sentido se seguirmos as recordações de David Noodles Aaronson, personagem de Robert De Niro, intoxicado por ópio do começo ao fim da trama. Talvez esta seja a principal intenção do diretor: intoxicar o espectador!
Nostalgia
A seqüência de abertura já vale o filme. Um interminável tocar de telefone é o efeito de som que acompanha o início da trama, destrinchando uma história que discute amizade e lealdade em mais uma prova do poder manipulador do cinema. A sucessão de crimes cometidos pelos protagonistas em nada minimiza a impressão do profundo amor entre os amigos e a posterior decepção. O que deveria causar repulsa provoca simpatia.
Aaronson é nostálgico. Sua representação é marcada pela busca de algo que nunca mais voltará. Isto ocorre em vários momentos da trama. A ação presente é determinada por Yesterday, dos Beatles. O ano é 1968 e ele aparece para tentar resgatar o passado. De uma misteriosa mala guardada em estação de ônibus, a ação pula para o encontro inicial entre garotos do bairro pobre do Lower East Side de Nova Iorque, sede da população de judeus emigrada da Europa no início do século XX.
O personagem jovem que será Aaronson lê a Bíblia no banheiro, mas, sem seguir os dez mandamentos, inicia uma vida de pequenas contravenções que terminam em assassinato. É, quando resolve vingar a execução de um dos mais queridos membros da sua gangue. No furor da vingança, mata e fere inclusive os policiais que tentam acalmá-lo. Fim do sonho americano, o pequeno escroque, quase ingênuo, é capaz de matar... a graça acabou já em princípio. Talvez por isto, o filme tenha incomodado tanto aos exibidores americanos.
Depois de cumprir pena em prisão, Aaronson volta ao grupo que já se profissionalizou em plena época de lei seca. Comanda cassinos, prostituição, distribuição ilegal de bebidas, além de assaltos, a vida é banalizada, mata-se quase sem razão.
O grupo é chefiado por Max Bercovicz, personagem de James Woods, que logo agrega Aaronson ao topo das articulações. Bercovicz confia na antiga amizade que seria superior ao interesse de ambos pelas mulheres. Enquanto isto, Aaronson tenta resgatar inutilmente o grande amor de sua infância, Deborah Gelly, vivida por Elizabeth McGovern.
O filme é um desfile de decepções exibidas pelos personagens, traições apontando para a vida solitária e de perdas irreparáveis. É a mesma tese que Coppola utiliza na saga de O poderoso chefão. A máfia novamente (só que em Era uma vez na América é a judaica) serve como pano de fundo para todos os excessos que nunca garantem a riqueza, nem a felicidade.
Violência
O espectador pode se perguntar: para que tanta violência a fim de contar uma história que trata de afetos humanos? A violência pode ser entendida como decorrente da desorganização do psiquismo na sua função de bloquear os impulsos. Em Era uma vez na América, a agressividade aparece como resultado de injustiça social, corrupção do poder e sede pelo mesmo.
A discussão sobre o cinema violento provavelmente nunca terá fim.
Para alguns, é sempre insuportável; para outros, até aceitável desde que a trama justifique, mas é claro que a imagem de qualquer tipo de agressão - mesmo implícita - sempre incomoda. Entretanto, a violência está na criação do cinema. Este foi inventado para chocar!
Lembremos que os primeiros filmes, ainda no início do século XX foram feitos para assustar o curioso público que se aglomerava nos teatros de exibições. Trens que avançavam, perseguições de carros, corridas de automóveis e até tiroteios eram as imagens mais difundidas para uma população que se interessava em ver nas telas o que não assistia nas ruas.
Em Era uma vez na América, a violência não é estilizada. O público em nada é poupado das mais terríveis vinganças e execuções. Uma das primeiras cenas do filme é a tortura, quase insuportável daquele que saberemos posteriormente ser um dos integrantes da gangue judaica, o amigo meio tolo, guardião involuntário da chave de um armário e de um segredo, essencial à trama.
Aaronson e Max, apesar da fraterna amizade estapeiam-se quando o um chama o outro de louco. O primeiro, por sua vez, não consegue segurar o impulso de violentar a antiga amada após uma romântica noite com jantar, dança e namoro em praia deserta. A violência é personagem da trama. É certo que isto contribuiu para assustar os exibidores, incentivando a mutilação do filme.
A América teria chegado ao seu apogeu com sua base apodrecida revelada? Os valores puritanos não se despedaçariam? O filme, de 1984, foi realizado em plena Era Reagan, de oposição ao velho Império do mal (russo). Películas como Rambo, Guerra nas estrelas, além de outros heróis violentos que estimulavam a eliminação do inimigo eram o main stream. Era uma vez na América escancara que o inimigo pode estar ao seu lado.
O lançamento em DVD com a tentativa de recuperar a intenção do diretor e autor pode significar que o mercado americano evoluiu, está mais democrático, ou apenas quer aproveitar o produto. Veremos, em breve, nas próximas eleições presidenciais, se o regime que prefere escolher o externo como inimigo será novamente referendado.
Para nós, resta torcer que o povo norte-americano escolha bem e que nós continuemos a ter acesso a lançamentos tão caprichados em DVD. Viva a Warner! Vaiamos nos erros, mas aplaudimos nos acertos!