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(ou mais uma vez os homens são uns bananas!)
Depois de longa temporada nos cinemas, o filme As horas é lançado em DVD para venda direta ao consumidor.
Muito se falou sobre o nariz de Nicole Kidman, se ela realmente ficou parecida com Virginia Woolf, ou as chances de o filme ganhar Oscar. Tudo isto já passou.
A película é um tratado sobre depressão. Não a depressão como sinônimo de tristeza, mas a depressão conforme o conceito de doença mental. O livro em que foi baseado (também As horas) segue, em narrativa, obras recentemente lançadas com relatos de escritores sobre as próprias depressões. Alguns escritores têm se esforçado para transmitir aos leitores o mal estar de seus quadros que são entendidos pela medicina como doença.
Tudo isto parece ter uma mensagem subjacente: tristeza patológica, sentimentos constantes de incapacidade, idéias suicidas, impressão de incapacidade não ajudam a criar. Não fazem parte de vivências obrigatórias como campo de pesquisa. Assim como outras patologias, a depressão também tira a liberdade de escolhas, restringe as opções que parecem se esvair sob o olhar atônito do deprimido.
Andrew Solomon lançou em 2001 um compêndio sobre sua doença, Demônio do meio-dia; neste ano, Lewis Wolpert escreveu, em Tristeza maligna, que a depressão de nada serve para um escritor, a não ser bloqueá-lo. Ambos os autores, bastante lidos, seguem os passos de outro famoso escritor, William Styron (de A escolha de Sofia), que inaugurou, em literatura, a febre de relatos pessoais de escritores que deprimiram.
Trata-se de um evento cultural.
A arte sempre foi amiga de enaltecer a doença como processo criativo. Nas artes plásticas, o brasileiro Artur Bispo do Rosário reina como um paladino de possível genialidade na doença. Possivelmente, se não fosse doente, criaria mais e melhor.
O cinema, a partir dos anos 70, foi o maior divulgador dos males da psiquiatria como especialidade médica. O psiquiatra foi comparado ao carcereiro, tendo a enfermeira como torturadora número um. Quem consegue esquecer Um estranho no ninho? Personagens de inúmeros filmes, desde então, ficam doentes da mente por suas famílias, seus chefes de trabalho ou pelos governos de seus países. Com muita freqüência, médicos são assassinos (Hannibal Lecter) e doentes são os criminosos (exatamente por ser doentes).
Este tipo de literatura em que renomados escritores descrevem suas doenças é um divisor de águas. É o fim da concepção romântica da doença mental. A partir destes escritos, aceita-se que a medicina pode nomear certos fenômenos que entende como doença e pode tratá-los.
As horas é muito mais complexo do que este ponto de vista. Pode ser entendido como um filme feminino, ou até feminista. São tantas e tão ricas personagens que há vários ângulos para análise, mas o aspecto da depressão exibidos nas três protagonistas não pode ser ignorado.
A cultura é fundamental para a expressão da doença mental. Nada é criado em uma depressão ou em nenhuma outra patologia psíquica. É o que afirmam os escritores comentados acima. O mesmo é mostrado em As horas.
Virginia Woolf está paralisada como escritora em toda a ação do filme. Em sua autobiografia Woolf, conta que um meio de se sentir útil em suas longas crises depressivas era copiando textos de outros autores, uma maneira de manter a cabeça funcionando, embora de inútil criatividade.
Na personagem vivida por Julianne Moore, a americana típica dos anos 50, a perplexidade é a tonalidade de sua representação. Moore tem uma família comum, uma vida comum, o cenário é neutro, sem conflitos, o que nos faz afastar qualquer hipótese de motivo externo para a depressão retratada. Seu marido é o paradigma do sujeito classe média americana. Falante, trabalhador, bom companheiro e bom pai, embora ingênuo e simples. É o dia de seu aniversário e a esposa quase catatônica deve lhe preparar algo. Conta com a participação de um aflito, mas encantador filho que percebe e acompanha o sofrimento da mãe. Moore é incapaz de pensar algo diferente da morte. Isto é evidente em seu olhar, em sua lentidão e em sua ação posterior.
Meryl Streep é a descolada e moderna mulher nova-iorquina. Tem uma companheira compreensiva, uma filha adorável e um antigo amor, seu melhor amigo à morte. A AIDS na personagem de Ed Harris fala pela depressão das três mulheres. Harris discursa o filme todo sobre a dor, sua impossibilidade de continuar, goza de quem tenta ajudá-lo, agride amigos e o espectador. Diz o que as três protagonistas não conseguem expressar.
Neste sentido, o filme acentua a importância da cultura na expressão da doença.
A AIDS é uma doença que pode se transformar em metáfora para banalidade da vida humana e o prenúncio de seu fim. A AIDS já invocou mais tragédias, assim como o câncer (graças a avanços da medicina que prolongam a vida e melhoram sua qualidade), mas, como nos ensinou Susan Sontag, ambas as doenças podem significar aquilo de mais amedrontador na espécie humana, que é a presença e a certeza da morte.
A depressão sempre teve o direito de ocupar o mesmo lugar destas doenças na cultura, mas sempre foi entendida pelos seus portadores como fraqueza, fracasso de vida, não uma patologia. Isto está mudando, assim como sua representação na cultura. É ao que assistimos em As horas, o que lemos nos relatos de escritores que deprimiram.
O filme também é extremamente feliz em mostrar como a doença modifica-se de acordo com a época. Em tempos de Virginia Woolf, ficava-se em casa, repousando, cercada por proteção de familiares e empregados. No início do século XX, não havia nenhum tipo de tratamento. Os casos graves eram internados, mas apenas para maior vigilância, garantias contra rompantes suicidas. Foi o que, inúmeras vezes, ocorreu com Virginia Woolf.
A personagem de Juliane Moore sofre calada. Na América pós-guerra, não há espaço para tristeza. O otimismo do american way of life impera. Ela tem tudo para ser feliz naquela sociedade. Não há por que sofrer ou entristecer. A não ser que esteja deprimida. E Moore nem consegue saber que está doente. Ela não entende o que ocorre consigo, não há palavras, apenas um beijo terno e de identificação com a vizinha que, em rápida visita, lhe conta estar com câncer. Aí elas se entendem. Novamente o câncer como metáfora...
A personagem de Meryl Streep, por sua contemporaneidade pode gritar, dar nome a seu sofrimento. Chora, reclama, tenta entender sua dor. Pode ser compreendida. A depressão no final do século XX é um conceito disseminado e aceito. É justamente sua personagem que chegará mais perto da morte, exatamente por estar mais próximo da verdade de um conceito aceito.
As três mulheres de As horas mostram o histórico de um modelo que, cada vez mais, é respeitado, embora antigo, repetido e, durante grande parte das últimas décadas, desprezado. É uma proposta de entendimento do sofrimento psíquico, uma invenção da medicina para concebê-lo, entendê-lo e tratá-lo. Parece simples, não?
Cabe ainda uma última observação: é através do homem deprimido que estas mulheres falam. O masculino é o que age de maneira inexorável, frágil e vulnerável em seu insuportável sofrimento e visão de mundo. Com ele, saltam pela janela toda a esperança masculina de redenção e, no ato histérico de desaparecer, no dia de sua homenagem, fere a única mulher que ainda o ama e é sua amiga.
Triste sina masculina, belo filme feminino, elas sobreviverão!