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Difícil dizer o que é mais frio: as baixas temperaturas das montanhas do norte do Canadá ou o que vem sendo realizado por boa parte dos diretores de tal país setentrional. Desafio no Ártico (The Snow Walker, 2003), dirigido por Charles Martin Smith (Meio a Meio, Air Bud, além de atuar em Os Intocáveis e Impacto Profundo), é o tipo de filme que cai no esquecimento assim que chega a primavera.
Baseado no conto "Walk Well, My Brother", de Farley Mowat, o gélido filme se passa em meados do século passado e conta a história do pioneiro Charlie Halliday (Barry Pepper), um piloto condecorado por sua participação na Segunda Guerra Mundial. Charlie é convocado por seu superior, Shepherd (o veterano e eterno coadjuvante James Cromwell), a testar um novo modelo de aeroplano. Durante o percurso, ele pousa numa isolada região habitada pelos esquimós Inuit. Lá, conhece uma pequena família cuja filha, Kanaalaq (a novata Annabella Tiugattuk), sofre de uma suposta tuberculose. Por meio de gestos e mímicas, eles combinam que o piloto levaria a moça a um hospital mais próximo. Entretanto, um problema mecânico faz com que seu avião caia nas águas de uma área remota do Ártico canadense. Sem ter a quem pedir ajuda, ambos são obrigados a sobreviver naquelas montanhas com recursos abaixo de zero.
Não é de hoje que o cinema recorre ao tema da sobrevivência que tem a era do gelo como cenário. Em trabalhos semelhantes, comumente baseados em fatos reais, os desastres aéreos servem pra criar um clima agorafóbico de tensão e desespero, em que as situações-limite provocam no ser humano atitudes próximas aos animais, como a antropofagia. A busca pelo nada, a onisciência do espectador de que não há salvação, desperta quem sabe até um certo sadismo a quem assiste. Justamente essa ausência de condições e de situações, esse vazio cênico, é que pode ser tão rico nas análises e sensações que o filme traz. Colocar o homem nu diante da realidade não deixa de ser uma maneira de olhar a si mesmo. O ser humano, diminuto perante a imensidão que certamente há de matá-lo, passa a ser apenas objeto de um quadro. Ele vai denegrindo na sua escala biológica, involuindo, tornando-se cada vez um animal mais subdesenvolvido, até sumir na natureza. Isso, claro, falando dos filmes que abraçam o gênero na sua forma mais profunda.
Há ainda a citar os filmes que falam do homem na sua forma mais pura, entretanto sem evocar acidentes ou catástrofes. Gerry (2002), de Gus Van Sant, coloca dois meninos no meio do nada. É um teste de resistência por indução, por vocação. Não se sabe ao certo as motivações e determinações dos personagens. O filme é estruturalmente radical na sua proposta mostrando um caminhar lento e absolutamente silencioso, rumo à completa deterioração lenta e progressiva da carne. Nada "acontece", na maneira mais tradicional de se entender cinema. Trata-se de um filme existencial, niilista ao extremo, ditador em seu ritmo. Uma espécie de Jim Jarmusch levado a sério.
Já o Desafio no Ártico é uma raquítica versão da série de TV Survivor. Chega a ser coerente quando mostra no começo Charlie jogando snooker, fumando charuto, aproveitando as boas coisas que a vida oferece e, mais pra frente, o mesmo bon vivant sujo e com a barba congelada. Mas cai na armadilha da manipulação quando apela pra recursos fáceis. É falaciosa a transformação da nativa Kanaalaq que, num momento, está tísica e pigarreante e, em outro, bela e jovial, sem ter tomado qualquer tipo de providências medicinais. Essa inversão do estado das coisas serve apenas para pontuar a quebra de ritmo do filme, sem uma verossimilhança plausível. É também equivocada a trilha sonora incidental, que encobre a densidade cênica e adocica o rigor dramático que a história pede, trazendo uma leveza injustificável e causando um interesse no máximo morno.
Nesse filme, o maior desafio parece ter sido decifrar o dialeto da região. Sua única viagem é literalmente a geográfica, pois ele sustenta o rótulo de convencional. Só não é pior do que se alimentar de roedores das neves. Vai pra tundra.
Ano: 2003
País: Canadá
Classificação: 14 anos
Duração: 103 min
Direção: Charles Martin Smith
Roteiro: Charles Martin Smith
Elenco: Barry Pepper, James Cromwell, Kiersten Warren, Jon Gries, Robin Dunne, Malcolm Scott, Michael Bublé