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<i>Encurralado</i>

<i>Encurralado</i>

25.05.2004, às 00H00.
Atualizada em 10.11.2016, ÀS 08H04

Coberta de espuma numa banheira azul oval, Simone Hammerstrand ilustrava a capa da Playboy de abril de 1971. A playmate daquele mês foi Chris Cranston, loira californiana de olhos azuis que achava sorvete de chocolate excitante, mas não gostava de homens que se atrasavam. Lana Wood, atriz mais conhecida por ser irmã da estrela Natalie Wood, também ganhou um ensaio todo seu. Mas o que chamou a atenção de Nona Tyson foi um conto de Richard Matheson publicado naquela edição, "Duel".

Matheson sofrera uma fechada de um caminhão numa estrada no mesmo fim-de-semana de 1963 em que morreu John Kennedy. Oito anos depois, tirou de lá a idéia para a historieta. Nela, um homem mantém seguros oitenta quilômetros por hora enquanto dirige pelas vias desertas do sul da Califórnia. Pisa mais no acelerador somente para ultrapassar um caminhão-tanque. Minutos depois, percebe no retrovisor que o mesmo vem com tudo para cima do seu carro. Por um tempo que parece interminável, o caminhão atenta ferozmente, sem maiores motivos, contra a vida do pobre homem.

Na época bem-sucedido criador de ficção científica, colaborador de Além da imaginação e autor do livro que deu origem a O Incrível homem que encolheu (The Incredible shrinking man, de Jack Arnold, 1957), Matheson deu sorte. Nona Tyson, a moça que se interessou pelo conto, era secretária de um diretor contratado há quatro anos pelo Estúdio Universal, Steven Spielberg, de 24 anos.

Ela lhe passa o conto. Ele se interessa. Na condição de diretor promissor de séries de TV, negocia com o produtor George Eckstein. Fica acertado que Encurralado (Duel) seria transmitido na sessão "World Premiere Movie" da rede ABC em 13 de novembro de 1971. Acontece que Spielberg, com um orçamento mediano de 450 mil dólares, tem apenas quatorze dias para filmar. Na única semana reservada à edição final, precisa reduzir as suas duas horas e meia de película para os 74 minutos disponíveis na grade da ABC. Billy Goldenberg tem dois dias para compor e gravar a trilha. 

Isso não impede Spielberg de entregar pronto o filme no dia 11 - e de cimentar a sua trajetória nos cinemas.

Tiranossauro

Encurralado é importante na carreira do diretor não só por engatilhá-la. Encontra-se ali um talento em estado puro. As condições limitadas de trabalho exigiam criatividade. Também não havia os efeitos especiais ou os grandes temas fantasiosos e humanistas que se tornariam a sua marca. No minimalismo se reconhecem os bons contadores de história - e aqui tudo se resume a uma locação, a estrada, e uma situação, o duelo do título.

Spielberg pega essa idéia básica e a estende numa pequena obra-prima de ares dramáticos e proporções epopéicas. O ator Dennis Weaver, no papel do motorista David Mann, surge como um Davi acuado diante de Golias. O seu carrinho vermelho não tem opção além de fugir do monstro cinzento de quarenta toneladas que buzina, faz barulho, solta fumaça como um dragão enferrujado. Aquilo que, em teoria, deveria seguir regras de conduta civilizada, se transforma numa luta primitiva por sobrevivência.

Para que essa sugestão se solidifique, é imprescindível que o motorista do caminhão-tanque nunca apareça além da penumbra da boléia. Assim, Spielberg transforma, simbolicamente, o veículo numa criatura viva quase mítica. E uma criatura com vontade própria, já que outra condição primordial é nunca revelar as motivações do perseguidor. Spielberg imaginava o caminhão como uma espécie de Tiranossauro. Não por acaso, quando o duelo termina na ribanceira, o diretor desenterra um sutil barulho de um dinossauro de Filme B para pontuar o final arrebatador do filme.

Igualmente marcantes são os desdobramentos sociais de Encurralado. Inspirado naquele relato de Matheson, que resumia o medo de toda a nação pós-Kennedy num único indivíduo, Spielberg faz um exame do vacilante American Way of Life dos anos 70. David Mann, típico comerciante de classe média, com o seu Plymouth típico de classe média, mantém um casamento infeliz, sustentado pela mulher, na base da inércia. Quando deixa a sua garagem para se arriscar em desfiladeiros onde não há qualquer sinal de segurança burguesa, a vida se revela claustrofóbica.

E aí pouco importa se o caminhão-tanque representa a contracultura que esmaga a passividade reacionária e as regras do Estado, ou o comunismo que renega o automóvel como ícone de consumo, ou o símbolo fálico que humilha um Mann (a irônica corruptela de "man" não é gratuita) emasculado. O que está em questão é a fraqueza de um homem que personifica o inconsciente coletivo norte-americano.

Justiça

Apesar da tímida audiência conquistada no dia 13, Encurralado foi muito bem visto pela crítica. Acabou indicado ao Emmy de melhor fotografia e ganhou o de melhor edição de som. Competiu também ao Globo de Ouro de melhor telefilme. Daí nasceu a sua versão estendida, de noventa minutos, que lançou-se ao mundo. Mas isso não fui suficiente para alavancar, naquele momento, uma estréia nos cinemas dos EUA.

Quatro anos depois, Spielberg inventaria os blockbusters, quando Tubarão (Jaws, 1975) virou mania, artigo de devoção e parâmetro de comparação. Em 1981 e 1982, respectivamente, o diretor também fez de Indiana Jones e E.T. símbolos pop. Apenas em 1983 reestreou Encurralado - já acoplado do epíteto "Tubarão sobre rodas", para vender o produto e situar os iniciantes. Quem conhece os dois filmes sabe quão injusto é o rótulo. Os improvisos da produção de 1975 não eram nada perto da experiência mambembe com a ABC. O magnetismo do peixão também dependeu das bases do suspense alicerçadas com o caminhão-tanque. Seria mais preciso dizer que Tubarão é o "Encurralado dos mares".

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