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"Baseado em fatos reais", dizem os créditos iniciais de Fargo (1996), dos irmãos Coen. Durante as filmagens, o protagonista William H. Macy, curioso com a extravagância da trama, perguntou a Joel e Ethan de onde eles tiraram a tal história verídica. "Ah, isso é só uma brincadeira... nós inventamos tudo", responderam com sinceridade. "Mas... não podemos fazer isso!", retrucou Macy, preocupado. Finalizaram os Coen: "Por quê não?".
O Âncora - A lenda de Ron Burgundy (Anchorman: The legend of Ron Burgundy, 2004), de Adam McKay, também começa com um "Baseado em fatos reais". Mas logo completa: "Apenas personagens, lugares e situações foram alterados". Percebeu a diferença? Os Coen fazem um absurdo inteligente. Diretor de esquetes do Saturday Night Live entre 2000 e 2001, o estreante McKay produz uma comédia limitada à medida em que sente a necessidade de "explicar a piada". Pode parecer uma insignificância, mas não é. A genialidade está nas pequenas coisas.
Os letreiros dizem muito do tipo de humor que os humoristas do SNL exercitam ao migrar para os cinemas. Criados na escola oitentista do besteirol, acostumados a mastigar fáceis tiradas físicas, na telona não conseguem ir muito além do óbvio. Pior, perpetuam uma espécie de Comédia Mobral. Nela, não basta provocar o riso, é preciso enfiá-lo garganta abaixo. Contar uma piada, repeti-la até expor o comediante - e o público - ao constrangimento. Essa é a receita de Adam Sandler, Mike Myers e, agora, Will Ferrell.
Gosto não se discute, evidentemente. Mesmo porque esse estilo grosseiro costuma ser muito bem recebido nas bilheterias. O problema é que A lenda de Ron Burgundy poderia ir muito mais longe.
Promissora, a trama parte da guerra dos sexos e da explosão do feminismo para ridicularizar a crise masculina nos viris anos 1970. Burgundy (Ferrell) é o apresentador líder de audiência entre os noticiários de San Diego. À frente de um time caricato de "repórteres", fala a todas as famílias sobre a maior torta do mundo ou sobre a gravidez da panda do zoológico. E Ron Burgundy, por mais que seja só um boçal de peito cabeludo, é a sensação entre a mulherada. Tudo muda quando chega à emissora uma jovem e decidida jornalista, Veronica Corningstone (Christina Applegate). Ele se apaixona como nunca, claro, mas ela periga roubar-lhe o emprego.
Não é difícil prever onde isso levará. Comédia de tiro curto, afinal, é o que há de mais recorrente no mercado. Mas um pouco mais de criatividade faria de O Âncora uma boa história espirituosa - mesmo porque Will Ferrell tem potencial para levar um longa sozinho. Daria para ridicularizar o estilo Burt Reynolds dos anos 70 sem transformar todo personagem num semi-retardado. Do jeito que está, resta se conformar com duas boas sequências: o show de Burgundy tocando flauta no bar de jazz e a briga à la Tolkien entre as gangues das emissoras rivais. É tão estúpido que até faz rir. Mas no cinema cansa logo.
Ano: 2004
País: EUA
Classificação: LIVRE
Duração: 94 min
Direção: Adam McKay
Roteiro: Adam McKay, Will Ferrell
Elenco: Will Ferrell, Christina Applegate, David Koechner, Paul Rudd, Steve Carell