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Seja o que Deus quiser | Crítica

O conflito cultural entre o paulista e o carioca acaba limitado a um tecno versus pagode

25.09.2003, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H14

Imagine o seguinte dilema na cabeça de Murilo Salles, carioca, 53 anos. Cineasta desde os dezenove, diretor de fotografia de vários sucessos do cinema nacional nos anos 70, Salles filmou Quando nascem os anjos em 1996. Considera esse o seu melhor filme, assim como muitos críticos o consideram um dos melhores filmes nacionais dos anos 90. Acontece que Quando nascem... surgiu no início da retomada, teve distribuição e sucesso bem discretos. Hoje o país assiste à nova safra, aos atuais recordes de bilheteria, à nova linguagem popular que surge entre um Guel Arraes e outro.

"Como manter a qualidade e, ao mesmo tempo, atingir o grande público?", deve ter pensado Murilo Salles, há seis anos sem filmar. Não é nada fácil responder a essa pergunta, nem basta citar Deus no título para fazer sucesso. Seja o que Deus Quiser! (2003), o seu novíssimo trabalho, é o exemplo prático dessa dificuldade. Saber do retrospecto de Salles ajuda a entender o filme.

Depois de entrevistar um grupo musical do Morro do Alemão, no Rio, a VJ Cacá (Ludmila Rosa, ex-apresentadora do Erótica MTV) acaba seduzida pelo rapper PQD (Rocco Pitanga, filho de Antônio, irmão de Camila). Eles transam, mas, pela manhã, quando ele sai, ela é assaltada e surrada por moleques que invadem o barraco. Na delegacia, Cacá dá queixa contra PQD e retorna à MTV, em São Paulo. Agora, procurado pela polícia, o inocente rapper precisa deixar o morro. Desesperado, ele viaja à capital paulista para desfazer o mal-entendido, mas cai nas garras do irmão da VJ, Nando (Caio Junqueira), cicerone tresloucado do carioca na selva de concreto.

À primeira vista, incomoda o esquematismo com que são tratados os temas principais: preconceito, engessamento social, perdição juvenil, crítica à mídia. Situações cômicas, correria noturna e trambiques financeiros remetem a filmes como Vamos Nessa (Go, de Doug Liman, 1999) e O homem que copiava (de Jorge Furtado, 2003). Irregular, na sua conturbada tentativa de aplicar lições e transmitir mensagens aos jovens, Seja o que Deus Quiser! resulta esquizofrênico. Ou seja, abusa de uma embalagem histriônica e clipada, com a intenção de criticar esse mesmo formato, abundante na televisão.

Se essa é a intenção de Salles, a arriscada fórmula sai desequilibrada. Ao jogar com estereótipos de fácil reconhecimento pelo público, o filme se afunda na superficialidade de personagens óbvios. Um poço de ingenuidade, PQD beira o inverossímil. Caricato, careteiro e gritalhão, Nando pinta como um dos personagens mais odiosos da atual temporada. E o potencial conflito cultural entre o paulista e o carioca acaba limitado a um tecno versus pagode. Tudo bem que o filme - eleito o melhor pelo júri popular no Festival do Rio 2002 - não pretende ser mais do que uma comédia de costumes, mas ao tentar falar a linguagem da geração Blog, Rave & MTV, acaba infantilizado.

A julgar pelo final bem sacado, que deixa questionamentos na cabeça do público, fica claro que Salles entende da arte. Assim, abrem-se duas leituras: ou o diretor usou de um cinismo impressionante, iludiu com o jogo forma-conteúdo para conseguir enfatizar a sua mensagem contra a mídia, ou então exagerou mesmo no tom da sátira e desperdiçou o bom material. Importa mais aos críticos saber qual das duas opções é a mais justa. Já o público-alvo, atraído pela publicidade colorida e pelo trailer modernoso, resta conferir se aceitará ver-se ridicularizado na tela.

Nota do Crítico
Regular
Seja o Que Deus Quiser
Seja o Que Deus Quiser
Seja o Que Deus Quiser
Seja o Que Deus Quiser

Ano: 2003

País: Brasil

Classificação: 16 anos

Duração: 90 min

Direção: Murilo Salles

Elenco: Rocco Pitanga, Caio Junqueira, Ludmila Rosa, Débora Lamm, Marcelo Serrado, Marília Pêra

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