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Mais Estranho que a Ficção (Stranger Than Fiction, 2006) é o novo Feitiço do Tempo (Groundhog Day, 1993). Ambos recorrem a estruturas de comédia romântica e realismo fantástico para falar sobre a arte de contar histórias.
Nos dois filmes, os personagens principais ficam sem ação diante de um fenômeno: há alguma força maior controlando as suas vidas (e não é o destino). No filme que Harold Ramis dirigiu em 1993, Bill Murray reprisava o papel de homem pasmado que sempre o marcou. Em Mais Estranho que a Ficção, ao contrário, o comediante Will Ferrell experimenta o seu primeiro personagem apalermado, acrescentado a uma rica galeria de tipos histéricos e cartunescos. É também a primeira comédia dita inteligente da carreira de Ferrell. Na trama metalingüística ele vive Harold Crick, cobrador de impostos da Receita Federal que surta quando a sua vida começa a ser contada por uma voz que só ele consegue ouvir. A narradora, Kay Eiffel (Emma Thompson), luta para completar o que pode ser seu melhor livro, ápice de uma carreira de romances trágicos. Kay só não percebe que o seu protagonista está vivo e incontrolavelmente guiado por suas palavras. Escrito pelo bom estreante Zach Helm, o roteiro ganha ares de contagem regressiva quando Harold descobre que Kay planeja matá-lo no final do livro. Há no caminho uma paixão, aparentemente incompatível (não há melhor paixão nas comédias românticas do que a incompatível). Bill Murray precisou viver o mesmo dia indefinidamente para ver que amava Andie McDowell. E o Harold Crick de Ferrell precisou ter uma vez dentro de sua cabeça, narrando seus atos e antecipando a sua morte, para perceber que estava jogando a vida fora.
Apoiado nos excelentes diálogos de Helm e na estrutura narrativa familiar ao espectador, o diretor Marc Forster (A última ceia, Em busca da Terra do Nunca) vira do avesso o batido mote do loser-que-desabrocha. O cinema indie de Hollywood tem forte tendência à fracassomania - quanto mais desgraçado o personagem principal mais bonita será a sua volta por cima. Forster subverte a situação com ironia: até o próprio Crick sabe que é um perdedor, porque há uma voz, contando sua história, que não pára de repetir isso.
A autoconsciência é a grande chave do filme. Somente ao entender a sua própria situação Crick tem a chance de domá-la. Nesse ponto, não há metalinguagem maior: onisciente, o personagem deixa de ser marionete do contador de história. Isto é, destronar o narrador da confortável posição de tirano - todo narrador é tirano, inclusive Kay Eiffel, e alguns, como os Paul Haggis e os Alejandro Iñárritu da vida, são mais que os demais - é o jeito de Harold Crick tomar para si os rumos de sua jornada.
Ano: 2006
País: EUA
Classificação: 10 anos
Duração: 113 min