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Entrevista

Omelete entrevista: Karim Aïnouz, diretor de O céu de Suely - Parte 1

Omelete entrevista: Karim Aïnouz, diretor de O céu de Suely - Parte 1

16.11.2006, às 00H00.
Atualizada em 03.11.2016, ÀS 22H05
O Céu de Suely
Brasil, 2006
Drama - 90 min.

Direção: Karim Aïnouz
Roteiro:
Karim Aïnouz, Felipe
Bragança, Maurício Zacharias

Elenco:

Hermilia Guedes, João Miguel, Maria Menezes, Zezita Matos, Georgina Castro

É ótimo entrevistar alguém que sabe do que está falando. Acredite, nem sempre acontece. O problema é cronometrar. Quarenta minutos não deram conta nem do começo da conversa com Karim Aïnouz, diretor de O Céu de Suely. O cineasta cearense é do tipo raro que conhece cinema, que cita influências recentes (não é só aquele papo o Kurosawa da infância me marcou muito) e que inclusive acompanha a produção de outros brasileiros. Isso também é raro numa indústria, como o cinema daqui, que tem um bocado de umbiguismos.

Aïnouz divide-se: dá para geografar o seu estilo a partir dos filmes diversos em que aparece nos créditos. Os roteiros de Abril Despedaçado, Cidade Baixa e Cinema, Aspirinas e Urubus têm a sua colaboração. Nos três é possível identificar um certo minimalismo crescido a partir do enxugamento do texto. Artista plástico e fotógrafo enquanto não filma (e durante também), ele valoriza mais a imagem do que a dramaturgia. Na verdade, confia na dramaturgia sugerida que brota das imagens - e é isso que fez a diferença em Madame Satã, o seu primeiro longa, e que faz a diferença agora com o segundo.

Na primeira parte da entrevista o diretor, filho de argelino com brasileira, cidadão do mundo, fala do regional e do global, menciona muitos aspectos técnicos da produção, mas sabe ser etéreo também.

O Céu de Suely ficou pronto no dia 25 de agosto. Deu tempo de assentar?

Eu nem sei ainda que filme é, porque ficou pronto há tão pouco tempo que você não entende direito ainda. Mas já acho que é como música de câmara, tem que ver ali quieto numa sala que não é muito grande, acho que tem uma coisa do contexto. Porque você não tem nenhum controle, obviamente, mas em relação à marcação das salas, estou tentando não marcar em cinemas grandes demais, grandes em matéria de espaço mesmo. O filme tem uma escala que é diferente, talvez não seja nem escala de cinema, mas de algum outro bicho que tenha ali. Escala de bordado, sei lá, que tenha outro tamanho.

A primeira exibição pública foi no Festival de Veneza. É como um choque, você não conseguiu ficar na projeção?

Foi muito louco. A cópia legendada eu nem tinha visto. A cópia foi, e eu não vejo o filme com público, nunca, tenho pânico. Nada contra o público, mas é que o filme deixa de ser meu. Em Veneza, evidentemente, apresentei o filme, mas não fiquei para a projeção. Voltei no final, porque tinha aquele coisa protocolar, première e tal, e foi curioso, porque essa coisa de não tô entendendo ainda não é viadagem, não. Pra mim é um filme meio feito à mão, um filme com acertos e defeitos, não é um filme superdesenhado e tal. E foi uma recepção tão calorosa, que acho que tinha algo ali em relação aos italianos, o fato de o filme brincar com o neo-realismo, que bateu na toada certa com aquele público. Ali foi surpreendente. Achei que ia ser bacana, mas não tanto.

Entre exibir o filme para um estrangeiro e para um brasileiro, dá para notar as diferenças?

Olha só: depende do estrangeiro. Veneza é um festival internacional, mas tem muito italiano - diferente de Cannes, Berlim, que têm uns 60% do público de profissionais de cinema. Então foi uma recepção muito calorosa. Diferente do Festival de Toronto, que foi a segunda exibição pública do filme, que teve uma recepção calorosa mas mais analítica... A Itália tem esse laço com o Brasil, que eu não sei explicar, que é diferente do Canadá. Depende do contexto. No Brasil tem sido bacana, mas ainda é uma recepção de festival, né? Alterada, digamos assim.

Falando de festival: Madame Satã surpreendeu na Mostra de São Paulo, e Suely, além de Veneza, foi premiado do Festival do Rio. Você chega como favorito, convenhamos, ainda porque tem essa aura de ser um dos expoentes do cinema minimalista do Nordeste. Você sente esse momento?

É até engraçado ouvir isso, movimento minimalista... Mas eu acho que venho sentindo como um todo o que você fala. Não especificamente a mim, Karim Aïnouz, mas desde o ano passado, com a presença do Cinema, Aspirinas e Urubus e do Cidade Baixa em Cannes, com o fato de eu ter uma relação com o Marcelo [Gomes, diretor do primeiro] e com o Sérgio [Machado, diretor do segundo]... Tenho sentido uma coisa bacana, sobre a qual pensei um pouco no Festival do Rio, independente dessa aura, que é a idéia de que a nossa geração não só chegou como está. O Madame Satã e alguns outros filmes, que são meio primos do Madame Satã, abriram as alas do Carnaval e agora ele está chegando. Carnaval é até uma palavra complicada, porque é o oposto do que estamos falando, mas carnaval como vibração.

No caso do Madame Satã, todos os prêmios que ganhamos foi depois do lançamento, o que é curioso. E o Suely foi pra Veneza, ganhou prêmio no Rio - e não acho que fôssemos favoritos pra ganhar alguma coisa no Rio - e agora tá em capa de jornal e tal. Têm uma vibe acontecendo esse ano, não sei muito por quê. Como eu estou no meio do furacão, às vezes ficamos com a percepção meio alterada, mas sinto que tem algo no ar. E não só com O Céu de Suely, não. Ano que vem vai ter o filme da Sandra Kogut, Mutum, que é incrível, tem o filme do Chico Teixeira, A casa de Alice, que é foda, foda. Vamos ter em 2007 uns oito filmes que serão superbacanas - e acho que de fato tem um frescor por aí. São doze anos da chamada Retomada, afinal. De fato dá pra perceber que existe uma renovação e novos autores - acho horrível essa palavra, ela está sendo usada de maneira perigosíssima, parece que tem uma dicotomia cinema de autor versus cinema de mercado.

Voltando ao favoritismo, acho que ele existe porque há na mídia e na crítica uma vontade de classificar as coisas, do mesmo jeito que a Retomada era uma classificação. E há uma uma vontade de erguer esse cinema do Nordeste, elegendo as pessoas que fazem parte desse movimento e colocando-as no centro da discussão.

Acho isso delicado, por que a discussão é mais interessante. Entendo o recorte, acho compreensível, mas é maior: estamos vendo, por exemplo, o renascimento do cinema de São Paulo, de verdade, que fala sobre a cidade e é diferente do cinema da década de 80. Pô, tem Contra Todos, entende? Tem o filme da Tata [Amaral], tem o filme da Laís [Bodanzky] que está sendo feito, tem o Cheiro do Ralo, tem o filme do Cao [Hamburguer]. Acho que seria mais saudável falar de um novo fôlego, por mais que isso seja nebuloso.

Outra coisa complicada desse recorte é que vivem me falando de autenticidade: porque você é cearense, o seu filme fala do Nordeste com um olhar de quem conhece.... Não é assim. Primeiro que eu sou de Fortaleza, não sou do sertão, e ainda assim fui embora, não morei muitos anos lá. Claro, tenho uma relação afetiva com aquele lugar que não tenho com Santa Catarina. Mas não é assim. Pô, tem um russo que fez um filme no Nordeste, Sonhos de Peixe, e deve ser incrível, deve ser foda. É legal também ter alguém que não é dali fazendo um filme sobre aquele lugar.

O que é fato é a implosão do eixo [Rio-São Paulo]. Isso é fato. Mas não acho que seja regionalização. Isso é sinal dos tempos... Tem mais vôos entre Recife e Paris, entre Rio e Londres, do que havia antigamente. E no mercado internacional há uma puta vontade para que o cinema brasileiro dê certo. O cinema como um todo. As pessoas estão como uma fome, querendo que isso dê certo, quase como uma possibilidade utópica, porque o Brasil é de fato um terreno de projeção da fantasia do outro, do europeu, do americano.

Mas isso é também uma procura pelo exotismo, e O Céu de Suely não é um cinema de exotismo.

Isso eu tenho o maior cuidado, político mesmo. O exotismo é complicado, ele serve ao teu bem ou ao teu mal, porque você não vê o outro, você não olha, você vê o que quer ver. Existe um desejo de usar Havaiana e verde-e-amarelo, mas de uma determinada maneira... Não fiz cinema pra ser exótico (o Madame Satã brinca com o exotismo, ele é quase auto-exótico). Uma coisa que eu quis fazer com esse filme era: deixa eu olhar. Tenho esse desejo agora, mas isso tem seu preço. Não é uma coisa imagine o que tem ali, porque o problema do exotismo é que você fica todo o tempo projetando. Acho que o filme vai ter uma carreira de festival do caralho - temos, sei lá, doze festivais até o ano que vem - mas acho que a venda do filme é mais complicada do que a venda do Madame Satã, por exemplo.

E eu fiz O Céu de Suely também porque é como se a gente, brasileiro, não fosse permitido fazer um determinado tipo de cinema. Ao cinema dos detalhes, da delicadeza, é como se não tivéssemos direito. É como se a gente fosse permitido fazer só aquele cinema que é ágil, que é quente, sexy, colorido. De verdade, estou surpreso com a recepção do filme porque achava que era um cinema permitido aos chineses fazerem, permitido aos iranianos fazerem, até aos argentinos, porque eles são eruditos e estudados e tal. Estou surpreso porque achei que esse cinema não seria... apreciado, digamos assim. Você vai ver isso no filme da Sandra, do Chiquinho, porque são filmes que têm uma relação com o cotidiano, com a observação, que é de outra ordem. Esses filmes vão permitir que os jovens façam um cinema que seja diverso, que não tenha obrigações, que não seja folclórico nem alegórico.

O fato de ter começado com uma explosão, que é o Madame Satã, e partido para algo mais calmo no segundo filme é consciente?

É totalmente consciente. Quando acabei de fazer o Satã, ele meio que te possui, é uma adrenalina. E quando acabei, falei que legal, mas eu também sou outras coisas. Também me interesso por outros ritmos, outro território. E por acaso, nesse momento da minha vida, estou interessado numa cinematografia que é mais calma, que tenha a ver com observação, com documentação. Não um documentário, com reportagem. Mas refletir coisas sobre o tempo e o espaço que são diferentes do Madame Satã. A própria escolha da geografia e do tema estão ligados e esse meu desejo de trabalhar com uma outra gramática, realmente. No Madame Satã era uma coisa maluca, porque é um filme de época e eu tinha que trabalhar com a ordem do dia. Se a cena tinha oito figurantes na ordem do dia, eu não podia entrar com dez, porque não havia figurino pra todo mundo. Aquilo estava me deixando maluco. Existe uma coisa muito evidente em O Céu de Suely que é a discussão de como vou me relacionar com o real, como vou beber do real. Deixa eu filmar o real. Eu posso abrir câmera e rodar, então uma das coisas que me fizeram escolher Iguatu [como locação] é que é uma cidade onde nunca se filmou. Cinema pra mim é playground também.

É uma cidade que não tem uma agenda.

Não tem, não tem. Uma atriz fala uma coisa muito engraçada no making-of do filme. Como elas ficaram morando lá dois meses antes da filmagem, os vizinhos perguntavam: mas e as artistas, vão chegar quando?. Perguntavam para as atrizes, ficavam brincando. Então tinha um desejo, um exercício, de poder fazer coisas que não pude no primeiro. E um desejo de não me repetir, enquanto diretor mesmo. Isso é um ato de liberdade. Tem um filme que eu não te falei e que é foda: Andarilho, do Cao Guimarães, que abriu a [27a] Bienal [de Arte de São Paulo]. Esse eu acho que nem vai ser lançado, é aquele que está eternamente na fronteira entre o que é documento e o que é ficção. Ali sim. Cinco pessoas, personagem real, não tem ator... Mas enfim.

Em Suely a indistinção entre o que é real e ficcional começa pela repetição dos nomes do elenco e dos personagem?

Não começa, mas passa por ali. Começa com o desejo de não mudar o nome do lugar. Nem lembrava disso: no princípio do roteiro o lugar se chamava Barcelona. No Rio Grande do Norte tem mesmo uma cidade que se chama Barcelona, achei uma brincadeira curiosa. Quando cheguei em Iguatu, logo pensei isso é só uma brincadeira curiosa, quem se interessa?. Bobagem. E, objetivamente, eu teria que mudar todas as placas da cidade para Barcelona. Primeiro, acho que é um dinheiro mal gasto. Também tem ali um ajuste de orçamento misturado com desejo conceitual, falar que o real também existe.

Depois que eu fiz o filme, agora que eu comecei a pensar mais sobre ele, acho que essa aproximação com o real está muito presente nas cenas em que os atores encontram as pessoas da cidade. Antes o filme tinha outro título, Rifa-Me, que eu mudei assim que chegamos a Iguatu, porque a produção ia virar a piada da cidade, tipo olha lá a mina que rifou a..., não sei o quê. E tem uma cena em que ela está vendendo rifa, no posto de gasolina, e os caras não sabiam que rifa era aquela, então é documental mesmo. Se você for ver a textura da imagem, é o que tinha de mais fechado, preto, porque não tinha luz. Filmamos e nem deu tempo do diretor de fotografia entrar para iluminar aquilo. O filme tem o desejo, o tempo inteiro, de brincar e se apropriar do real. Mas tem também um desejo, maior do que esse, que é dizer que não tem real, é tudo uma construção. O filme não é neo-realista, ele é hiper-realista nesse sentido. O realismo é uma construção.

Como foi montar cenário, iluminação, nesses lugares como o posto de gasolina e o baile de forró?

Eu me lembro muito disso. Tem uma cena no começo do filme em que ela está vendendo rifa no café para uns homens. No roteiro, ali era a locação onde ela diria para a tia que iria se rifar. E eu queria fazer um negócio que não precisasse dirigir figuração. Só que é uma cena que tem três páginas de diálogo. A gente leu aquilo e viu que tinha um problema. Como eu queria filmar uma cena que não tem encenação se são três páginas de diálogo superescritos? Então reescrevemos o roteiro. Não dá pra colocar uma roupa menor num corpo gordo. Nas cenas em que era necessário ter muita figuração - figuração parece extra-terrestre, nas cenas em que tinha muita gente - desenhamos o roteiro em função da situação.

Por exemplo, na cena em que ela está dançando no forró, encontrei uma locação que tinha o forró e, embaixo, uma escadinha onde acontecia a pegação. Divulguei na cidade inteira que ia ter filmagem, então o forró bombou. E ficava aberto das 22h à 1h. Aí filmamos o forró em cima - ali não tem nenhuma figuração, acabamos a filmagem tinha sangue no chão, de briga com faca, sabe? - e à 1h fechamos o set, a festa, jantamos entre 1h e 2h, e das 2h às 5h filmamos a cena em que ela dança com o cara e oferece a rifa. No caso do posto, trocamos as lâmpadas de cima, colocamos umas luzes nos postes, e fomos medindo o negativo. Negativo de cinema hoje em dia é foda: você pode fotografar à luz de velas. Então fomos no limite da técnica e fomos tentando trazer tudo para a diagese cinematográfica, tudo pra dentro. Fomos descobrindo ali um jeito de fazer.

É muito complicado liberar os atores de marcação de cena e ao mesmo tempo filmar com tripé?

Puta que pariu, é muito difícil. E eu acho que não acertei, não. Tem horas ali que dá certo e horas que não dá certo. Tem um cara que faz isso, que eu acho genial, de ficar sem fôlego, que é o Jia Zang-Ke. E acho que não estou pronto, preciso ainda de um tempo de mise-en-scène pra pegar. Porque você não sabe pra onde o ator vai, tem que iluminar pra tudo... Filmar com tripé, com ator solto, improvisando, é um milagre. Você não vê o [John] Cassavetes filmando com tripé, é um desafio.

Mas se abrir ao acaso é outra maneira de se aproximar do real.

Sim. Tem muito take 1 no filme. Take único. Mas o tripé é difícil.

Aguarde a segunda parte da entrevista, mais a conversa com a protagonista de O Céu de Suely, Hermila Guedes, no dia 16 de novembro, véspera da estréia do filme em circuito comercial.

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