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Toni Venturi |
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Cenas de Cabra-cega |
Paulistano de 49 anos, Toni Venturi cresceu numa família de comunistas em plena ditadura. Tinha quinze anos quando a repressão apertou de verdade os insatisfeitos de esquerda que não aceitavam os ditames do regime. Essa vivência se espelha no seu trabalho como cineasta.
Política já foi tema na sua estréia em 1997, quando dirigiu O Velho, documentário sobre o líder vermelho Luiz Carlos Prestes (1898-1990). Venturi fala aqui sobre o seu terceiro longa, Cabra-cega (2005), no qual a profunda pesquisa documental - foram consultados diversos ex-guerrilheiros na gestação do filme - alicerça a poesia da ficção sobre um rebelde setentista que, ferido e fechado num apartamento, se vê forçado a refletir sobre a sua vida e a sua militância.
Tendo provado do documentário e da ficção, qual te cabe melhor?
São formas de expressão próprias, cada uma tem o seu espaço. Os melhores filmes brasileiros do ano passado foram documentários. O real é importante. Mas a ficção traz um novo olhar. É interessante quando se cruzam. E eu transito entre um e outro muito à vontade.
E o próprio título do filme já é uma crítica, uma tomada de posição.
Eu não faço uma crítica cínica, nem cética, mas uma crítica sutil, porque essa geração teve um desprendimento de luta por um Brasil melhor. Não eram ingênuos, tanto que sentiram na carne. Respeito os jovens que batalharam por isso, mas hoje a gente já pode olhar com um pouco mais de perspectiva, já dá pra ver a opção da luta armada como a cagada estratégica que realmente foi.
As cenas de tortura no filme são poucas, mas fortes.
Não dá pra não mostrar, sabe? Eu não queria fazer só um libelo. Acho que a violência é balanceada. Está no ponto também para não espantar o espectador.
Você comenta que não te interessa o libelo. A própria trilha sonora do filme tem ícones da época, Chico Buarque, Caetano - mas em versões modernizadas, como "Roda Viva" no ritmo eletrônico de Fernanda Porto. Isso significa que você tenta evitar a nostalgia?
Não quis pegar o Geraldo Vandré, aquela marcha. Tudo tem uma ponte pra hoje. A cenografia e os figurinos servem para a época mas caberiam hoje. Eu não quis fazer a reconstituição "caricata". O cinema é representação. Você pode escolher. Optei por um realismo que pudesse ser identificado pelos jovens.
O filme se passa quase que completamente dentro de um apartamento. A escolha pela locação intimista, econômica, foi condicionada ao baixo orçamento da produção?
Foi tudo pensado na pré-produção. Moldamos o roteiro às nossas condições. Só dei o start mesmo na produção quando achei esse "apartamento-personagem", que ficamos dois meses preparando. Uma sala era para o nosso guarda-roupa, outra para o nosso material... Numa hora conquistamos todo o condomínio, cheio de velhinhos. O prédio acabou "comprando" o projeto. Tive que abrir mão de coisas de que eu gostava mas também é bonito resolver essas limitações.
Por conta dessa opção realista fechada dentro de um ambiente, o filme provoca uma claustrofobia quase polanskiana. O diretor polonês te agrada?
Roman Polanski é um dos ídolos da minha juventude. Almocei com ele ano passado [quando ele veio a São Paulo para uma retrospectiva de seus filmes], falamos sobre O Pianista, que eu adorei. Muita coisa que ele fez hoje é parte do meu inconsciente.
É gratificante ver que a narrativa confia no poder do visual, como a idéia da tinta rachando no teto para transmitir a sensação de que o tempo passa no apartamento.
Legal que você reparou nas rachaduras. Detesto filmes radiofônicos, aqueles violinos na hora de chorar. A gente trabalhou em tirar do texto todo o discurso. O filme busca o silêncio, a tentativa de contar através de imagens a história. E nada é por acaso. A tinta no teto é aquela teia que pega o personagem, o mundo que desmorona...
O filme mostra que quando o militante de esquerda é obrigado a "parar para pensar", o conflito interior aflora. Concorda?
O [personagem] Thiago pira porque preso no apartamento ele não está em sintonia com o que acontece fora, aquele rio caudaloso. Era uma situação limítrofe, a adrenalina se auto-alimenta, é quase uma imolação pelos que se foram. Ele implode nesse sentido, ele precisa da ação para sobreviver.
O ator que vive Thiago, Leonardo Medeiros, é inclusive fisicamente parecido com o ministro José Dirceu, ex-militante perseguido pelo regime.
Não... (sorri com o canto da boca) O Thiago é inspirado livremente no Carlos Eugênio Paz, que integrava a ALN [Ação Libertadora Nacional] e pirou. É o general sem soldados que viu as pessoas morrendo, se exilou em Cuba e na Europa, voltou ao Brasil em 1980 e fez dez anos de psicanálise. Hoje ele é o autor de dois livros, Viagem à luta armada e Nos caminhos da ALN. Colabora como consultor do filme.
E os codinomes dos guerrilheiros do filme são todos nomes bíblicos. Tem a ver com os apóstolos de Cristo que também se viram diante de uma missão maior do que eles conseguiam carregar?
Na verdade a resposta é mais mundana. É uma homenagem à Ala Vermelha. Era a organização mais classe média, todos jornalistas, e eles se deram mal na época. Muitos dirão que a organização retratada no filme é a ALN, mas eu quis colocar isso também para homenagear o Alípio Freire da AV, que é muito amigo meu e consultor do filme.
Boa parte da equipe, o diretor de fotografia Adrian Cooper e o elenco principal aparecem creditados no fim do filme como produtores associados. Isso não é comum.
Quis colocá-los como meus parceiros. Pagamos todo mundo, claro, mas é um projeto pequeno. Essa é uma maneira de dar retorno financeiro para eles também.
Nos últimos meses a Ditadura voltou à mídia devido ao caso Herzog e à abertura dos arquivos secretos do Exército. Você pensa em retomar o tema?
Acho que o momento é bom para uma releitura racional. Mas meu próximo projeto está voltado para o hoje. É sobre dois triângulos amorosos, os dois "Brasis" contemporâneos. Para falar a verdade, sofri um pouco com o "filme de época". É muito difícil fazê-lo com baixo orçamento. Mas eu pretendo voltar ao tema, a longo prazo.