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Muitos filmes políticos erram por transformar seus personagens em figuras ideais. Na vontade da denúncia, do engajamento, sobram slogans e acaba faltando a sua humanidade. Felizmente, não é o que acontece com Crônica de uma fuga (Crónica de una fuga, 2006), e por um motivo crucial: o seu herói não faz parte da resistência.
Claudio (Rodrigo de la Serna, o Alberto Granado de Diários de Motocicleta) tem todo o jeito de ser comunista. Guarda bandeiras de protesto em casa. Goleiro do time do bairro, reclama ao técnico depois da derrota que falta ao time união. Transcorre 1977, a violenta ditadura na Argentina, e os repressores batem à sua porta. Levam-no preso. Logo descobrimos que ele foi dedurado por um jovem que não aguentou a tortura. Só que Claudio não tem nada a ver com os insurgentes. Teve apenas o azar de ter seu nome lembrado por um desesperado.
A sua situação na mansão Seré - centro de detenção e tortura da polícia no bairro de Morón, periferia de Buenos Aires - é similar à de outros presos. Na tentativa de se verem livres, os que estão na casa há mais tempo entregam novos nomes, que entregarão outros, e assim por diante. Mas Claudio tem a sua dignidade. Tem mais esperança de ser libertado do que de perpetuar o castigo com outros inocentes. Depois de quatro meses de tortura, porém, resta pouca luz. E aí começa a crônica da escapada, baseada em história verídica.
O diretor uruguaio Adrián Caetano cimenta o seu manifesto contra a repressão, antes de mais nada, preocupando-se em montar um suspense tenso. Iluminação baixa, vastos espaços e câmera fixa, para impor a claustrofobia. Eliminar dramatização excessiva é parte do processo (não há homens fazendo suas últimas preces ao som de violinos). Outra parte é não ter medo da realidade - se os presos eram mantido desnudos, sujos e machucados, que o elenco reproduza a situação. Claudio passa boa parte do tempo pelado, coberto de hematomas, e isso é bom avisar. Não é coisa para qualquer espectador.
Da relação de sobrevivência entre Claudio e os presos vem a força conceitual do filme. Eles não tentam escapar em nome de uma causa. Não lutam para derrotar o regime. Não pregam suas idéias ao demais. Querem apenas retomar suas existências. Não são seres apolíticos, de maneira alguma. Mas o fato de não abraçarem bandeiras é o que permite expor as suas fragilidades, é o que torna a tortura tão dolorosamente verdadeira. Ver que Claudio de uma hora para a outra passa a recorrer a Deus é um desses exemplos do que pode acontecer a uma pessoa normal em momento de ruína. Questionar a ideologia do protagonista é algo que jamais ocorreria num filme político de panfleto.
Não há cena mais latente desse humanismo do que o reencontro com a grávida. É uma sacada genial, que sintetiza um tipo de perda que só entende quem a vivencia.
Ano: 2006
País: Argentina
Classificação: 14 anos
Duração: 103 min