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Cama de Gato | Crítica

<i>Cama de Gato</i>

16.09.2004, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H16

Cama de Gato
Brasil , 2002
Drama - 92 min.

Direção: Alexandre Stockler
Roteiro: Alexandre Stockler

Elenco: Caio Blat, Rodrigo Bolzan, Cainan Baladez, Rennata Airoldi, Val Pires, Claudia Schapira, Nany People, Alexandra Golik, Bárbara Paz, Cabeto Rocker, Carla Trombini, Élcio Rodrigues, Jairo Mattos, Janaína Kan, Lavínia Pannunzio, Luís Araújo

A mais nova produção a desembarcar no circuito de filmes nacionais vem a público depois de uma bem-sucedida viagem de dois anos por festivais nacionais e internacionais. Primeiro longa de Alexandre Stockler, importado do teatro paulistano, Cama de gato não tem nenhum nome famoso no elenco e na produção - exceção apenas a Caio Blat - e nem apoio da onipresente Globo Filmes.

O filme é o primeiro rebento do Trauma (Tentativa de Realizar Algo Urgente e Minimamente Audacioso), manifesto fundado por Alexandre em 1999 e que foi rotulado como uma resposta ao célebre Dogma dinamarquês, de 1995. No Trauma, a proposta principal é fazer um filme de qualidade com orçamento mínimo. "Estamos mais preocupados em fazer filmes do que em discutir as possíveis razões das insuperáveis dificuldades de fazê-los", diz a filosofia do manifesto, batendo de frente com o habitual pensamento brasileiro.

De acordo com esses preceitos, Cama de gato foi produzido totalmente em digital, num custo de 13 mil reais que já se tornou mítico. Todos os envolvidos trabalharam a preço de custo, incluindo aí atores, técnicos e produção - o que não falta nos letreiros finais são nomes creditados como PTO, ou "pau pra toda obra".

A ainda pequena fama do filme vem de seu conteúdo polêmico, pontuado por cenas cruas de sexo e violência, que roubou à força a atenção dos críticos. Além das palmas - e vaias - colecionadas nas poucas exibições anteriores, o longa vem sem apoio de marketing ou mídia maciça. Praticamente uma incógnita, que infelizmente não deve sobreviver muito em cartaz.

Brincando com fogo

O enredo gira em torno de três amigos, adolescentes paulistanos de classe média alta, recém-ingressos na faculdade, inteligentes, sem grandes dificuldades na vida. O ambiente perfeito para uma vida calma, no velho padrão natural do nasce-cresce-se reproduz-e-morre, sem necessidade de conflitos com o mundo que gira à parte.

É aí, nesse "à parte", que mora o problema. Com os seus protagonistas, Alexandre faz uma análise crua de uma parcela significativa da juventude moderna. Aquela que é mantida dentro de uma redoma cheirosa pelos pais e que acaba desenvolvendo moral e ética próprias, conflitantes com o padrão do bom-senso da sociedade em geral.

Não que os três personagens sejam déspotas adolescentes, daqueles estereótipos de novela que humilham o porteiro - apesar de não deixarem de fazê-lo, mas não por crueldade deliberada. Os três amigos são mais inteligentes e esclarecidos que a média que se vê por aí, adeptos até mesmo de uma espécie de roleta russa filosófica, onde o melhor argumento leva as apostas.

Mas, apesar de esclarecidos, têm também poucos limites entre diversão própria e infração moral. O estupro triplo de uma garota, por exemplo, pode ser bem divertido. Afinal, pela sua lógica viciada, ela vai acabar gostando. O processo desanda quando esses limites começam a gerar conseqüências maiores.

No filme, a descida do barranco começa exatamente com o tal estupro - exibido em detalhamento razoável pra incomodar boa parte da platéia, rivalizando-o com aquele sofrido por Monica Bellucci em Irreversível. Em pouco tempo, os três amigos têm dois corpos nas mãos e não fazem idéia de que atitude tomar. Na tentativa de encobrir os erros, segue-se uma seqüência que beira o humor negro, em busca de uma solução que restaure o status quo.

Cama de gato, de ortodoxo não tem nada. Com a produção em digital, a qualidade técnica não é das mais perfeitas: granulação da imagem, falta de luz e som abafado são acontecimentos comuns. A direção e o jogo de câmeras, bem feito, vai do close ao plano aberto e ao close novamente em pouco tempo. Em vários momentos, Stockler utiliza o equipamento portátil para reproduzir o olhar dos personagens.

Os atores encarnam com destreza os amigos cabeçudos e inconseqüentes. Sem desmerecer os outros, Caio Blat merece um destaque por fugir do padrão global. Pra brincar com a verossimilhança dos personagens e do próprio filme, a limitação adolescente é misturada à eloqüência teatral digna de grandes debatedores.

Adicionando ao roteiro - que por si só já abusa de metalinguagem - o diretor utiliza-se de trechos de uma série de entrevistas feitas nas ruas da cidade. A produção e o elenco conversaram com um sem número de adolescentes durante as filmagens, de várias classes sociais, que deram sua opinião sobre as situações do roteiro e as escolhas dos personagens.

Por vezes, os depoimentos chegam a incomodar mais do que a explicitação do enredo principal pela sua veracidade: aquela linha de pensamento é sim plenamente aceitável em algumas cabeças, e a edição dos depoimentos enfatiza o raciocínio raso dos entrevistados.

Quem já foi criança sabe: cama-de-gato é aquele passatempo que se faz com um barbante, produzindo labirintos entre os dedos, que deve ser passado para a mão de outra pessoa, formando novos padrões. Aparentemente sem fim, a brincadeira é a metáfora perfeita para essa juventude retratada no filme, que só faz transformar uma confusão em outra, sem se preocupar com uma solução - afinal estão bem aparados, seja pelo dinheiro, seja pelo "pai".

Na falta de filmes que incomodem na atual produção nacional, Cama de gato cumpre seu papel ao, pelo menos, tentar.

Nota do Crítico
Regular
Cama de Gato
Cama de Gato
Cama de Gato
Cama de Gato

Ano: 2002

País: Brasil

Classificação: LIVRE

Duração: 92 min

Elenco: Caio Blat

Onde assistir:
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