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Artigo

Charles Schulz e Peanuts

Criador do Snoopy e sua turma faria 90 anos em 26 de novembro de 2012

26.11.2012, às 12H07.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H11

"Os domingos jamais serão os mesmos".

Assim o jornalista Dave Astor iniciou o seu artigo na revista Editor & Publisher de fevereiro de 2000, em que enfocou o falecimento, ocorrido no dia 12 daquele mês, do quadrinhista Charles Schulz. E ele completava, dizendo: "... e nem os dias da semana, também...".

Charles Schulz

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Os mais de 300 milhões de fãs dos quadrinhos desse autor ao redor do planeta certamente concordam com Dave Astor. Para eles, nada mais será como antes sem a possibilidade de encontrar uma nova tira de Charlie Brown a cada manhã, algo que aconteceu durante quase cinqüenta anos, ininterruptamente. Sempre com o singelo desenho de Schulz. Sempre com uma mensagem muito pessoal a todos os leitores, levando-os a viver ao mesmo tempo a inocência perdida com o final da infância e a profundidade de um estudioso da alma humana que vai ao mais profundo de cada um e dali arranca sentimentos, emoções, ansiedades que sequer se imaginava possuir. Schulz era o próprio mundo dos quadrinhos em toda a sua pujança, em toda a plenitude criativa que essa forma de manifestação artística conseguiu atingir. Talvez até um pouco mais que isso. Com ele, um novo modelo de humor, sutil, intelectualizado, foi incorporado aos quadrinhos. E criou escola.

UM INÍCIO POUCO ANIMADOR

O início de sua tira mais famosa, como aconteceu com muitos outros autores antes dele, foi humilde, quase passando despercebido. Apenas 7 jornais chegaram a publicá-la na primeira vez em que surgiu distribuída pelo United Features Syndicate, em 2 de outubro de 1950. Era, sem dúvida, um índice desanimador, que iria aumentar de uma forma vagarosa e até mesmo irritante para o autor nos primeiros seis anos de distribuição, período que levou para conseguir colocar o seu trabalho em mais de cem jornais. Uma vitória marcante para ele na época. A página dominical havia aparecido quatro anos antes, mas não havia interferido tanto assim no aumento da popularidade de seu trabalho. Nada, então, prenunciava a estonteante cifra de 2.600 jornais que atualmente a publicam todos os dias em 75 países, fazendo de Peanuts a série de maior distribuição em toda a história dos quadrinhos.

Muitos autores opinam que a grande virada do trabalho de Schulz, em termos de popularidade, ocorreu em 1958, quando o autor fez com que o cachorrinho de estimação do protagonista passasse a se mover apenas nas pernas traseiras, adquirisse características antropomórficas e vivesse cada vez mais em um mundo de fantasia de feições romanescas, em que criava um mundo heróico só seu, transformando-se em aviador da Primeira Guerra, escritor ou oficial da legião estrangeira. Pode até estar aí a razão maior do seu sucesso. Com Snoopy o mundo mágico das crianças encontrou uma voz marcante e significativa no trabalho de Schulz. A partir daí, todos nós, leitores, voltamos a ser crianças com aquele cachorrinho simpático que jamais abdicaria da ousadia de sonhar...

No entanto, essa é apenas um das explicações plausíveis. É bem possível que as raízes do sucesso tenham começado a ser plantadas antes disso, aos poucos, à medida que Schulz ia colocando características próprias em cada um de seus personagens. Ele os transformou em personalidades distintas e únicas, fazendo com que cada leitor se identificasse com pelo menos algum deles. E, com isso, formulou um novo modelo para os quadrinhos humorísticos, seguido por tantos outros depois dele, como Johnny Hart (B. C.), Tom K. Ryan (Tumbleweeds), Dik Browne (Hagar, The Horrible), Quino (Mafalda) e Bill Watterson (Calvin and Hobbes), para apenas citar alguns.

AS CRIANÇAS

As crianças de Peanuts passaram a representar a humanidade inteira, em um processo catártico que quebrou fronteiras culturais, lingüísticas, religiosas, políticas, intelectuais e morais como nunca outra história em quadrinhos antes, tornando-a talvez a tira mais conhecida no mundo inteiro.


Charlie Brown
, o protagonista, é aos poucos composto como o ápice de todas as nossas neuroses, a inabilidade em pessoa, o perdedor crônico, o eterno fracassado que jamais consegue vencer um jogo de beisebol, receber um cartão no dia dos namorados ou fazer voar uma pipa e que procura dentro de si mesmo, sem jamais encontrar, coragem suficiente para conversar com uma menina ruiva que ele ama em silêncio. E, com isso, nos transforma e nos redime. Quem jamais teve dúvidas, ansiedades, inquietações? Quem, como o cabeçudo Charlie Brown não sente necessidade de ser amado e apreciado por aqueles com quem convive?


Lucy
é a mulher prática, racional, arrogante, que tira vantagem de cada oportunidade que aparece e está sempre pronta inclusive a se aproveitar da ingenuidade dos outros para atingir o sucesso. Sua vítima preferida é logicamente o pobre Charlie Brown, de cuja boa fé ela se aproveitou anos a fio, extorquindo-lhe as parcas economias em seções de terapia fajutas ou retirando a bola de futebol americano quando ele estava para chutá-la.

Schroeder
, talvez o mais estranho de todos, estabeleceu Beethoven como o ícone maior da tira humorística, seu grande ídolo, que venera diariamente em seu piano de brinquedo. Por amor ao grande músico europeu, esquece do mundo e ignora o interesse de Lucy por ele. Como diz Umberto Eco, Schroeder "encontra a paz na religião estética: sentado ao seu pianinho de araque, de onde tira melodias e acordes de complexidade transcendental, afundado em sua total admiração por Beethoven, salva-se das neuroses cotidianas, sublimando-as numa alta forma de loucura artística".

Linus
é o modelo da insegurança, buscando se apoiar em elementos externos na sua necessidade de afirmação - ora o seu cobertor, do qual jamais se separa, ora o Great Pumpkin (o Grande Abóbora, um personagem mítico que aparece no dia das bruxas), ora o televisor. É capaz de tiradas filosóficas inigualáveis, que se tornaram as ilustrações prediletas das camisetas dos jovens da década de 60, como a já antológica: "Eu gosto da humanidade. O que eu não suporto são as pessoas". Um gênio.

Woodstock
é a menor das personagens de Peanuts, mas não poderia ter maior presença. É meio desajeitado, seu vôo e lógica são erráticos, mas ele sabe datilografar e tomar nota. Via de regra, topa tudo que Snoopy quer fazer.

A esse pequeno núcleo, agregam-se vários outros, que revoluteiam as mesmas situações, vendo-as sob ângulos diversos. Em Schulz, segundo ele mesmo, os esquemas temáticos resumem-se a um máximo de doze situações-tipo, como a árvore comedora de papagaios que frustra as tentativas de Charlie Brown de manter no ar um papagaio de papel, o balcão de psicanalista de Lucy, o cobertor de Linus, ou as tentativas frustradas de Charlie Brown para chutar a bola que Lucy segura para ele. Variações de poucos temas, que geraram mais de 17.000 tiras repletas de magia, todas idealizadas, desenhadas e arte-finalizadas por Schulz, que, segundo comentam seus biógrafos, jamais deixou qualquer outro desenhista assumir o seu lugar.

UM NOME POUCO ADEQUADO

Nem tudo era perfeito na relação do autor com a obra, no entanto. Schulz jamais aceitou o título que lhe foi imposto para a tira, Peanuts, que os editores imaginavam referir-se a crianças pequenas e que acabou se tornando sinônimo de coisa sem importância. Para o autor, havia o perigo dos leitores confundirem o título da tira com o seu protagonista - o que aconteceu no Brasil, onde Minduim foi o nome dado, durante muito tempo, ao pobre do Charlie Brown. Além disso, para o pai de Snoopy as crianças jamais seriam coisas sem importância...

Ao falar de crianças, Schulz fala de todos nós. Sua obra é uma declaração de amor à Humanidade, uma declaração que durou quase 50 anos. Poucos fizeram tanto. E daí, por justiça, tem-se necessariamente que ampliar a afirmação do jornalista da revista Editor & Publisher: o mundo nunca mais será o mesmo sem Schulz.

Leituras recomendadas:

  • ECO, Umberto. O mundo de minduim. In: ---------. Apocalípticos e integrados. São Paulo : Perspectiva, 1976. p. 281-291.

  • MARSCHALL, Richard. Charles M. Schulz (1922- ) In: --------. America’s great comic-strip artists: From the Yellow Kid to Peanuts. New York : Stewart, Tabori & Chang, c1989.

Imagens © United Features Sindycate, Inc.

Artigo originalmente publicado em 16 de outubro de 2000

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