Um universo inteiro parece não ser o bastante para certos escritores de quadrinhos. Enquanto há aqueles como Kurt Busiek e Frank Miller, que sentem-se à vontade trabalhando em títulos onde apenas uma cidade reúne elementos de todo o gênero (super-herói na Astro City de Busiek, policial na Sin City de Miller), outros não se contentam nem com infinitas realidades. Stan Lee e Jack Kirby imortalizaram seus nomes como criadores do Universo Marvel, possivelmente o mais bem sucedido nos quadrinhos. Julius Schwartz e Gardner Fox, por terem iniciado a Era de Prata e o conceito das terras paralelas na DC. Já Mark Waid e Grant Morrison, ao apresentarem o conceito do Hipertempo nas páginas do evento The Kingdom, no final de 98, afirmam ter dado o passo seguinte, não só trazendo de volta as terras paralelas como validando também dentro dele toda história já escrita, redefinindo assim a própria idéia de continuidade. Ficamos apenas com a dúvida: será que realmente conseguiram isso tudo&qt;&
A gênese do multiverso na DC, convém aqui lembrar, ocorreu na transição da Era de Ouro para a Era de Prata dos quadrinhos. Mais especificamente, com o surgimento do segundo Flash na revista Showcase 4, em 1956. Super-heróis andavam em baixa havia anos, o mercado dominado por outros gêneros, e muitos já não eram mais publicados. Quando a editora decidiu investir neles uma vez mais, a tarefa de revigorá-los coube a Julius Schwartz, e o personagem escolhido para dar a partida foi o Flash. Por exigência de Schwartz, contudo, apenas o nome e os superpoderes permaneceriam os mesmos do Flash tradicional (Joel Ciclone no Brasil). Tudo mais seria diferente. Sendo assim, a história escrita por Robert Kanigher e desenhada por Carmine Infantino apresentou um herói inteiramente novo, porém inspirando-se em seu antecessor de forma peculiar: Barry Allen, o novo Flash, conhecia Jay Garrick, o primeiro, das histórias em quadrinhos que lia. Estava evidente, pois, que Barry vivia numa realidade distinta, onde Garrick era mero personagem ficcional. Poucos anos depois, em Flash 123, Schwartz e Gardner Fox foram mais longe, permitindo que Barry e Jay se encontrassem na clássica história Flash de Dois Mundos.
O conceito das terras paralelas estava oficialmente estabelecido, e foi um sucesso. Encontros tornaram-se cada vez mais freqüentes, e não só entre os dois Flashs. A atração principal logo ficou por conta das reuniões anuais entre as maiores superequipes de cada universo, a Sociedade e a Liga da Justiça, representantes da Terra Dois e da Terra Um, respectivamente. Ironicamente, quem recebeu o nome de Terra Dois foi o mundo habitado pelas versões originais dos personagens, enquanto a das reformulações ficou chamada de Terra Um. No Brasil, ficaram também conhecidas como Terra Paralela e Terra Ativa. Esta, além do novo Flash, e na esteira do sucesso deste, contava com novas versões também de personagens como Lanterna Verde e Falcão da Noite (Gavião Negro). Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha continuavam basicamente os mesmos, porém mais jovens, ao passo que suas versões da Terra 2 estavam envelhecidas, pois haviam iniciado suas carreiras na época da Segunda Guerra Mundial, período real da criação dos personagens.
O multiverso agradava tanto que não parou mais de crescer. Em 1964, por exemplo, surgiu em Justice League of America 29 a Terra 3, onde a história ocorreu de forma inversa, aqueles que conhecemos como membros da LJA integram o Sindicato do Crime e são os maiores vilões do planeta, enquanto Lex Luthor é seu único herói. Por outro lado, novas Terras eram criadas para abrigar personagens de editoras menores adquiridas pela DC. Caso das Terra 4, Terra S e Terra X, respectivamente habitadas por heróis da Charlton, Fawcett e Quality Comics. Com o tempo, encontros entre personagens de Terras diferentes, outrora evento de destaque, passavam a ser corriqueiros e pouco significativos. Pior, com a freqüente migração de personagens de uma Terra para outra, a confusão estava generalizada e tornava as revistas da editora cada vez menos atrativas aos leitores. Era nisso, ao menos, que a DC acreditava ao lançar, em 1985, o primeiro número da maxi-série que marcou o fim de uma era e mudou para sempre a sua história, Crise nas Infinitas Terras.
Coincidindo com o aniversário de 50 anos da editora, o evento orquestrado por Marv Wolfman e George Pérez propunha-se basicamente a simplificar o Universo DC (UDC), eliminando as terras paralelas e recontando do zero as origens de seus principais personagens. Esperava-se que, desta maneira, fosse resgatada a visão de seus criadores, deixando de lado a mitologia construída em torno deles ao longo das décadas. O que houvesse de válido em cada universo permaneceria, incorporado a uma Terra unificada. Dessa forma, ter-se-ia um universo mais forte, coeso e de fácil acesso a leitores novos. A idéia, vale notar, continua recorrente entre editores. O projeto Ultimate Marvel, ainda que em menor escala, não deixa de ser um esforço semelhante por parte da editora concorrente.
De início, Crise gerou bons frutos. As reformulações foram assinadas por artistas de extrema competência, as vendas aumentaram e tudo parecia bem. Mas não por muito tempo, infelizmente. Falhas na cronologia, em especial com Gavião Negro e a Legião dos Super-Heróis, decorrentes da falta de coordenação editorial em ocasião das reformulações, e posteriores utilizações de continuidade retroativa na tentativa de resolvê-las tornaram a história na nova Terra tão ou mais complicada que a do extinto multiverso.
Até meados dos anos 90, a política da editora era tentar arrumar cada buraco na cronologia e corrigir as maiores incoerências. Sem sucesso. O propósito de Mark Waid e Grant Morrison com os eventos DC Um Milhão e The Kingdom foi justamente na direção oposta. Os dois percebiam que a realidade resultante de Crise era um universo único apenas por imposição editorial, que na prática nunca chegou a funcionar. Conforme explicaram, o Hipertempo esteve sempre presente e é o conjunto de todas as realidades paralelas existentes, onde toda e qualquer história já publicada pela DC pode ser encontrada. Dos contos da série Túnel do Tempo às mais perturbadoras experiências na linha Vertigo, da Legião dos Super-Animais a Watchmen. A cronologia volta a ser uma ferramenta a ser usada pelo escritor, a seu serviço e a serviço das histórias, não mais uma fonte de limitações. Continua havendo um UDC principal, do qual os elementos eliminados em Crise não mais fazem parte, e onde elementos das inúmeras terras paralelas continuam mesclados numa Terra unificada, mas tudo existe no Hipertempo. Não só o que for criação da DC. Histórias publicadas por outras editoras, em livros ou filmes, e até nossas vidas e tudo o que imaginemos também constam no Hipertempo. É como se cada acontecimento tivesse sua própria linha temporal, e cada instante nela originasse infinitas possibilidades e infinitas linhas temporais distintas. Estas podem se cruzar, ou cruzar com a linha de tempo principal do UDC e gerar assim mudanças quase imperceptíveis em alguns casos, drásticas em outros.
O potencial é, de fato, ilimitado. Seu aproveitamento, entretanto, ainda tem sido módico. Depois da apresentação em The Kingdom e da saga Hipertensão, em Superboy, a DC tem se mostrado receosa quanto a exploração do conceito. Waid e Morrison afirmam que o principal ainda está por vir, quando conheceremos a verdadeira natureza do Hipertempo. Os dois já garantiram que este não será utilizado apenas para explicar falhas editoriais ou revisitar personagens esquecidos. A investida seguinte da dupla seria em Hipercrise, prevista inicialmente para 2001. Problemas com o conselho editorial da DC e projetos pessoais de cada um, no entanto, tornam ainda impossível afirmar quando - e se - a saga realmente será escrita. Resta-nos a tarefa de pacientemente aguardar e esperar o melhor. Ainda há uma infinidade de boas histórias a serem contadas, e um mecanismo que eleve esta quantidade à enésima potência simplesmente não pode ser desperdiçado.