|
O pós-modernismo, conceito que tomou vulto a partir do final do século passado graças ao pensador francês Jean-François Lyotard, aproximou-se, de forma controversa, às raias filosóficas envolvendo e se aplicando a todas as expressões humanas da atualidade. Os quadrinhos, como uma dessas expressões, podem ser dos principais veículos que seguramente bem retratam a situação pós-moderna (à falta de um nome mais apropriado e atualizado). Neste sentido, a edição de agosto da revista Dylan Dog torna-se um exemplo perfeito para ilustrar essa questão, já que nela se encontram as simbioses entre arte e cultura de massa e as referências e citações típicas presentes no que se convencionou chamar de pós-modernismo.
A despeito da temática fantástica e de terror que costuma impingir suas marcas neste título das edições italianas Bonelli, as informações apresentadas na história Golconda! exploram e revisitam a arte, o teatro, a música (rock), a veracidade na fotografia, a história, a geografia, a sociologia, a antropologia e a própria história em quadrinhos, num caleidoscópio ficcional excelente como exercício de leitura e análise para utilização em escolas e faculdades, coroando a questão transdisciplinar, afinada, de certa forma, com os próprios meandros da pós-modernidade.
A aproximação à pós-modernidade fica evidente a partir da capa da revista, que explicita uma homenagem ao pintor belga René Magritte (1898-1967), cuja obra, envolta em simbolismos e surrealismos, já serviu de elementos para teorizações filosóficas acerca de realidades e virtualidades. O quadro, Golconda, que é repetido numa interessante seqüência quadrinhística na história, foi assim batizado por Magritte a partir de uma rica cidade homônima da Índia, país que surge como parte do palco da narrativa, cuja premissa é a de demônios que são despertos quando determinados locais ainda virgens no planeta são pisados pelos inconseqüentes humanos.
Os desenhos de Piccatto têm uma estética realista, sendo fluidos e muito bem trabalhados, principalmente na arte do preto e branco. A proposição do roteiro, mesmo não sendo das mais originais, é fartamente enriquecida por citações não gratuitas oriundas de várias mídias, valorizando a edição e elevando-a ao status de pequena obra de arte (Simbólica? Surreal? Não, nada disso: pós-Moderna).
Das várias outras citações que aparecem na história e compõem sua rica colcha de retalhos informacionais pode-se destacar, por exemplo, um trecho da música Night of the Demon, do conjunto britânico Demon (na história chamada The Demons), a famosa fórmula desenvolvida por Albert Einstein, uma frase contundente do escritor e dramaturgo alemão Bertold Brecht, a conhecida e controversa fotografia envolvendo míticas fadas, além de imagens arquetípicas de seres lendários europeus (como uma versão alternativa do Senhor dos Sonhos original). Porém, a homenagem mais interessante fica por conta da bela e inteligente reapropriação do estilo narrativo e estético registrado na história das histórias em quadrinhos como linha clara, seguindo o estilo de autores como Edgar P. Jacobs, cujos roteiros bem elaborados faziam verdadeiras incursões ao realismo fantástico.
Enfim, esta revista de Dylan Dog (com texto de Sclavi e desenhos de Luigi Piccatto) traz, entremeados em suas falas e imagens, potenciais ilimitados que deleitam a mente humana e que podem suscitar muitos diálogos pertinentes aos rumos que a sociedade tem tomado, suas criações e conseqüências, principalmente no concernente à conceituação acadêmica da pós-modernidade. Além disso, ela também resgata e valida a questão da utilização em salas de aula destes mesmos materiais oriundos da sociedade contemporânea (os também controversos elementos da cultura de massa), como os próprios quadrinhos.
Gazy Andraus é pesquisador do Núcleo de Pesquisa de História em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), Mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP, doutorando em Ciências da Comunicação da ECA-USP, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e autor de histórias em quadrinhos autorais adultas, de temática fantástico-filosófica.