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Entrevista

Omelete entrevista Lourenço Mutarelli

Omelete entrevista Lourenço Mutarelli

31.01.2006, às 00H00.
Atualizada em 10.11.2016, ÀS 02H04

Cena de O que você foi
quando era criança?


À esquerda, nas filmagens de
O cheiro do ralo


Uma das imagens
que fez para Nina

Não sei o quanto você conhece do trabalho de Lourenço Mutarelli, mas o que se vê ali não é exatamente algo bonito de se ver, no sentido Walt Disney da expressão. Naquelas páginas brancas e pretas estão muitos problemas, muita amargura. Somando tudo isso às histórias que eu havia escutado de pessoas que já tinham se encontrado com ele, confesso que tinha lá o meu pé atrás sobre como seria este bate-papo. A desculpa para nos encontrarmos era a reestréia de O que você foi quando era criança?, peça que marcou sua estréia no teatro, e o lançamento do álbum A caixa de areia, que a Devir colocou nas ruas na semana passada.

O que eu encontrei no teatro do Centro Cultural São Paulo foi um sujeito super na boa, que antes de começar a entrevista saiu para fumar e durante a conversa fugia da troca direta de olhares. Quando me apresentei, cumprimentei o Mutarelli, artista consagrado pela crítica e com uma considerável base de fãs do seu trabalho como quadrinhista. Durante os quinze minutos que ele falou, fui conhecendo o Lourenço, sujeito pacato, que faz questão de dizer que trocou de medicamentos e hoje está sob nova fórmula, muito mais amigável e com amigos na vizinhança. O prazer realmente foi todo meu!

Com trabalho no cinema, teatro, livros e, claro, quadrinhos, o que você responde quando perguntam sua profissão?

Eu nunca sei o que dizer. Não sei o que sou. O problema é que sempre que eu vou falar desenhista eu mexo a mão, assim [faz o gesto]. Ultimamente, eu falo que sou artista, que é mais engraçado. Tudo o que eu faço é tão próximo... mas eu não sei definir qual é a minha profissão.

E depois de fazer tantas coisas diferentes, qual vai ser a próxima mídia que você vai se meter?

Eu tenho brincade de ser ator e tenho gostado dessa experiência. Eu fiz um curta-metragem com um menino da USP no começo do ano, e no Cheiro do ralo eu faço um personagem também. Eu tenho gostado muito dessa experiência, mas eu acho que vou continuar fazendo o que eu já vinha fazendo também.

No FIQ do ano passado, você falou que depois do Caixa de areia ia dar um tempo nos quadrinhos e se dedicar mais a escrever para o teatro. Este plano ainda continua na sua cabeça agora que terminou o álbum?

É... acho que não. Achou que não vou conseguir. Depois que eu voltei do FIQ, justamente, fiquei com muita vontade de conseguir acabar Caixa de areia, que estava parado há um ano. E aí... aí começa a dar uma coceira. Eu agora vou fazer mais uma peça, depois mais um romance e daí, na seqüência, provavelmente vai ser ou quadrinhos ou um híbrido. Alguma coisa entre literatura e algo mesclado com imagem.

E como foi este longo processo do Caixa de areia?

Eu gostei muito. Não por ser o último, mas acho que é o trabalho em que consegui o que sempre me faltou muito: uma certa delicadeza, uma leveza maior do que meus outros trabalhos. Meu traço é muito pesado, meu texto geralmente é muito pesado. Esse eu fiz dedicado pro meu filho.

Eu trabalhei ele totalmente fora de ordem. São duas histórias que correm alternadamente. Eu achava que era um livro infantil, até eu montá-lo e começar a ler. Nessa hora eu percebi que não é um livro infantil. É uma história que fala sobre a realidade, idealidade e o tempo. É uma reflexão sobre esses aspectos.

No seu site tá falando que é uma autobiografia...

Aquele site não é confiável. Eu nunca vejo aquele site. Eu sei que as pessoas mandam e-mail pra mim, mas eu nunca recebo e as pessoas reclamam, mas a verdade é que nunca chegou um e-mail na minha mão. O nome da peça naquele site tá como O que você vai ser quando crescer, ou algo assim, e que estreou em Curitiba. As informações estão todas erradas. Eu não sei de onde eles tiram essas informações... Mas o que é que está escrito lá mesmo?

O site diz que Caixa de areia é uma autobiografia sua.

É uma falsa autobiografia. Eu quis fazer um momento biográfico das coisas mais triviais e sem graça. E tentei fazer um história bastante desinteressante. A proposta mais ou menos era essa. Eu queria desenhar as coisas do jeito como elas acontecem, que nunca são grandes coisas. É uma história em que só acontecem coisas mínimas e quase cotidianas. Isso entremeado com outra história, que é muito Esperando Godot [de Samuel Beckett], tem uma influência grande.

Quando você fala que é sobre o nada e mostra a vida de uma forma desinteressante, dá para dizer que tem um pouco de Seinfeld ou Anti-herói americano?

Eu comecei este álbum em 2003 e não tinha visto o Anti-herói americano ainda. Quando vi, percebi que tem muito a ver com o filme e nada a ver com Casa de areia [filme de Andrucha Waddington] que por um tempo também se chamou Caixa de areia. Este álbum tem a ver com o Anti-herói em algum sentido, mas acho que o meu é menos amargo. São pequenas coisas cotidianas, que acabam sendo interessantes, mas é mais amargo. A caixa de areia mostra o cotidiano banal, mas não necessariamente amargo.

Isso é um reflexo da mudança de medicamento, que você também citou lá no FIQ?

Isso tem refletido muito. Há alguns anos eu mudei uma medicação que eu tomo e nesse livro eu ia até colocar embaixo do meu nome [a frase] agora sob nova fórmula, porque eu mudei completamente. (risos) Mas vai ficar pro próximo, porque quando eu comecei, eu ainda não estava sob a nova fórmula. Mas a medicina tem avançado muito. Agora eu sou muito sociável, tenho amigos no bairro... (risos)

Fale um pouco sobre a gravação de Cheiro do ralo e sua participação nos sets de filmagem. Você ficava por lá direto, como foi o seu envolvimento com o projeto?

Desde o começo eu falei pro Heitor [Dhalia, diretor] que a minha distância era ele quem iria determinar. Se ele quisesse que eu não visse nada, pra mim tanto fazia. Mas como eu me comportei direitinho no set, ele me ofereceu um papel. Eu falei que eu queria o do protagonista, brincando, é claro! Mas daí eles me chamaram para fazer o segurança, por causa do meu porte físico (risos). É um personagem bastante ridículo e engraçado. Foi incrível! Eu nunca pensei que seria tão emocionante. Foi um processo muito emocionante porque foi um filme feito com muito pouca verba, então as pessoas que estavam envolvidas eram porque gostavam mesmo dele, ou do Selton [Mello, o protagonista], ou de mim, ou de alguma outra coisa. Então foi um processo muito gratificante, muito tocante. Foi bem legal!

E como começou esta parceria com o Heitor, que já rendeu um trabalho no Nina, o livro Jesus Kid [que foi encomendado pelo Heitor, como um projeto de baixo orçamento] e agora tem o Cheiro do ralo?

É engraçado isso porque na verdade aconteceu ao contrário. Quando não fazia nem um mês que o livro Cheiro do ralo tinha saído, o Heitor já tinha comprado os direitos. E aí, ele me conhecendo, freqüentando a minha casa, acabou descobrindo meus desenhos e me chamou para fazer o Nina. Então, primeiro foi O Cheiro do ralo, e aí eu fiz as animações do Nina.

Eu admiro muito o trabalho do Heitor e é muito legal trabalhar com ele. O Jesus Kid é uma coisa pro futuro. Não sei se vinga ou não, mas de qualquer forma também foi uma parceria.

Como você vê o fato de seu roteiro ser adaptado por outra pessoa? Você não fica com ciúme do texto, dos personagens que você criou?

Não! Muito pelo contrário! Quando compram os direitos do livro, eu acho ótimo. Eu quero vender muitos direitos porque você ganha um dinheiro sem ter que fazer nada. E é ótimo ver a visão de outras pessoas sobre o seu trabalho e também é muito interessante ver os atores, como no caso da peça também, dando vida para estes personagens.

E como é a sua rotina de trabalho?

Eu tinha uma. Eu era muito disciplinado: acordava às 6h e trabalhava muito, até de madrugada. Mas depois que descobri essa coisa de ser artista, que dá um monte de boiada, você pode ter crise e tal, eu tenho trabalhado muito pouco e eu estou sempre em crise pra poder aproveitar o ócio, jogar videogame e fazer coisas assim. Então, por isso eu assumi que era artista. Antes eu falava que era artesão e trabalhava igual a um jumento. Agora, não. Agora eu sou um artista e trabalho um pouquinho e descanso bastante. É mais saudável.

Quais são os videogames que você joga?

[Com um jeito bastante cínico] Eu gosto muito de jogar com o meu filho um game que eu acho bem educativo, aquele GTA, sabe? Ele que me ensinou. É muito divertido incinerar pessoar idosas e... é legal. Eu gosto de jogos um pouco violentos assim, com bastante sangue. Eu gosto, me distrai.

Já pensou em escrever um roteiro de games?

Não! Já me convidaram, mas eu não gostaria de pensar. Quando eu estou escrevendo alguma coisa, eu não penso muito... sei lá. Teria que elaborar demais esse tipo de história. E quando você elabora demais, eu acho que você perde um pouco da essência do que está fazendo.

Qual o momento em que você desencana de retocar um texto e fala tá pronto!?

Eu trabalho sempre com música. Eu sempre me preparo para trabalhar com música. Quando eu estou desenhando, é música o tempo todo. Quando eu começo a escrever, eu paro a música. Mas eu escrevo por uma certa freqüência que eu sinto. Quando vejo que estou saindo dessa freqüência, que estou me desviando disso, que isso pode alterar o texto que eu estou fazendo, eu paro e só volto quando consigo atingir de novo a mesma freqüência.

Então, acho que isso é importante. Se não está indo, você tem que parar mesmo. A não ser que você tenha um prazo, né? Mas se tem um prazo, geralmente isso ajuda você a se concentrar.

E a peça, como surgiu a idéia, o convite?

O convite foi meu. Eu me convidei! Eu tinha vontade de experimentar o teatro.

Foi um processo em que a gente trocou muito. Eu escrevia, eles improvisavam, e em cima destes improvisos eu reescrevia. Tem muitas coisas que entraram [no texto final] que vieram dos próprios atores. Tem cenas que eles mesmos criaram e a gente assimilou. Foi um processo. Durante um tempo, foi muito bom, e depois ficou bastante caótico. E aí foi o momento em que eu me afastei um pouco, mas para mim foi bastante importante porque foi minha primeira experiência.

Depois disso, eu já escrevi mais uma peça, que eles ainda estão captando e pretendo escrever mais.

Você já falou de um romance e uma peça que tem na cabeça...

É só sentar e escrever.

E sobre o que são estes trabalhos? Dá para falar um pouco sobre eles?

O romance, eu não posso falar, porque eu ainda estou em dúvida sobre o caminho que vou seguir.

A peça é um realismo fantástico ou alguma coisa assim. Sei lá como classificar. Mas é a história de um casal. O cara está há muito tempo desempregado, quase três anos. E ele é chamado pelo coronel - isso é um detalhe que vai ter na história - e oferecem para ele o trabalho de carrasco. Então, ele vai decaptar pessoas com um machado. E aí entra toda essa crise moral. Ele precisa do trabalho, mas é uma coisa totalmente contra os princípios dele, mas ele tem que ir adaptando os aspectos morais dele a esse novo ofício. E com o tempo, ele vai desenvolvendo a arte da decapitação e vai ficando bom nisso e pegando gosto. É mais ou menos isso.

Como vai se chamar essa peça?

Não tem nome ainda. Não tem nem título provisório.

Além da peça que fica em cartaz até o dia 9 de fevereiro no Centro Cultural São Paulo e do lançamento do livro, quais são seus próximos trabalhos?

Depois tem uma coisa engraçada. Eu vou fazer uma matéria com o Xico Sá para a Trip, que é um jornalismo tipo Hunter Thompson. Ele entrevista e em vez de um fotógrafo, eu faço as imagens. Então, em fevereiro eu vou para esse cruzeiro do Roberto Carlos. Eu vou fazer as imagens e ele vai fazer as entrevistas. A gente vai ficar cinco dias no transatlântico e vai ser uma experiência no mínimo muito divertida porque o Xico é fantástico!

Bom, isso por enquanto. Aí vou escrever essa peça, e então o romance e acho que no meio do ano, passando a Copa, deve estrear o Cheiro do ralo.

E durante a Copa, você vai parar para assistir aos jogos?

Não. Eu detesto a Copa! Geralmente é uma época em que eu trabalho bastante, porque não tem mais ninguém trabalhando.

Colaborou Livia Vilela

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