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A típica comédia da contracultura, característica dos lisérgicos anos do flower power, termina com uma algazarra com todos os personagens, banho de espuma, bolas de sabão, corre-corre e alguns animais selvagens que não se sabe de onde saíram. É assim em Um Convidado bem Trapalhão (1968), por exemplo. E foi igualzinho, um ano antes, em Cassino Royale.
A base do roteiro é a primeira história do espião, publicada em 1953 pelo jornalista e escritor londrino Ian Fleming (1908-1964), a única que não havia sido comprada pela EON Productions (detentora dos direitos dos demais romances e dona da série oficial no cinema). Com os direitos vagando à deriva, o produtor Charles K. Feldman, depois de oferecer Cassino à EON e receber uma negativa, decidiu conduzir uma produção independente. Em 1967, ano em que também sairia Com 007 só se vive duas vezes, James Bond já tinha quatro filmes no currículo. Era o suficiente para consolidar a mitologia do espião - e é justamente ela que Cassino Royale satiriza.
O ator David Niven a certa altura do filme ironiza: Agente secreto virou sinônimo de maníaco sexual!. Niven interpreta Sir James Bond, o verdadeiro e único 007, que decidiu se aposentar por desgosto. Diante de tantas tralhas de loja de brinquedo e rastros de mulheres mortas, em suas palavras, ele não vê mais motivo para ser espião durante a Guerra Fria. Mas acabam convencendo-o, e lá vem de novo Bond trabalhar a serviço da Rainha.
Duas características básicas de 007, o seu apetite sexual e o fato de todo mundo conhecê-lo (ainda que devesse ser secreto), são as bases de boa parte das piadas. O Sir Bond de Niven inventa uma maneira de enganar os inimigos: todos os espiões agora, homens ou mulheres, deverão se chamar James Bond - 007. Assim ninguém saberá quem é o verdadeiro. E esses escolhidos deverão passar por um teste: resistir ao charme de uma série de mulheres para não se deixarem enganar pelas vilãs de verdade. A cena do treinamento pelo qual passa Terence Cooper, aplicando golpes de judô em mulheres deslumbrantes e sedutoras, é hilária.
Símbolos sagrados da franquia são totalmente desmoralizados. O verdadeiro nome de M, por exemplo, descobre-se na comédia. Ele é escocês, se chama McTarry, e suas onze filhas têm entre 16 e 19 anos. Ursula Andress, a primeira Bond-girl oficial, também aparece no filme, parodiando a si mesma no papel de Vesper Lynd. E há, claro, autorizados pelo remendo do roteiro, uma série de Jamezes Bondes. Além de Niven e Cooper, Peter Sellers também o interpreta, com o talento de sempre (e com direito a gag de sotaque indiano). E tem Woody Allen tipicamente frenético, como o sobrinho do espião, Jimmy Bond.
Sequências impagáveis: Mata Bond, a filha de James com Mata Hari, entrando no QG alemão decorado em estilo Cinema Expressionista; o quase fuzilamento de Woody Allen; os números de mágica de Orson Welles no cassino. Aliás, a interpretação de Le Chiffre de Welles é a melhor coisa do filme. Nos bastidores, ele e Sellers não se bicavam. O ator inglês exigiu que suas cenas à mesa fossem rodadas em dias separados, para que ele não cruzasse com Welles no set. O jeito de resolver foi filmar tudo com plano e contraplano puro. A cena inteira é antológica - poucas personalidades de Hollywood sabiam rir de si mesmas como Welles.
A disputa de baralho é um dos poucos momentos em que o filme é realmente fiel ao livro. De Cassino Royale, o romance, o longa não deve ter nem meia hora, dentro de seus 130 minutos totais. Uma salada, caríssima. Não por acaso, a lista de roteiristas creditados, oficialmente três, cresce violentamente se contado o número de pessoas que escreveram cenas e gags individuais ou deram seus pitacos. E de um filme com cinco diretores - o grande John Huston à frente - só se espera mesmo muita mistura. Para encerrar os vaivéns e as pontas soltas, dar algum fecho ao nonsense, só mesmo um final como o descrito lá em cima.