A Assistente

Créditos da imagem: Bleecker Street/Divulgação

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Crítica

A Assistente

Filme-denúncia dos abusos em Hollywood opera como um raio-x do ambiente de trabalho

Omelete
4 min de leitura
12.01.2021, às 13H19.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H48

Vem da Austrália a diretora do drama A Assistente, distante o suficiente de Hollywood para abordar os assédios morais e sexuais da indústria do cinema de forma inflexível. Movida por um sentimento de repulsa, em reação aos escândalos que originaram o movimento #MeToo,  Kitty Green estreia na ficção com um olhar apartado que organiza o mundo clinicamente sem o risco de se contaminar.

Essa distância protocolar, segura, fica inscrita mesmo no filme em uma série de escolhas de câmera e enquadramento pensadas para tornar o ambiente de uma produtora em Manhattan o mais impessoal possível. Acompanhamos um dia na rotina de Jane (Julia Garner), a assistente do título. Jane é a primeira a chegar e a última a sair, responde pelas burocracias do escritório, precisa ouvir desaforos calada e fazer vista grossa para os abusos, enfim, o pacote básico dos estagiários, com a diferença de que o subemprego de Jane lhe é vendido como a oportunidade de uma vida digna de cinema.

Desde a forma como retrata o chefe (sempre da cintura pra baixo ou com o som no extracampo), à escolha pelos planos estáticos (que na ausência de movimento de câmera reforçam a rotina de estagnação e repetições), tudo no trabalho de câmera de Green é pautado pelo desprezo. Os planos se estendem quando Jane está na copa servindo-se de algo, e a câmera fica a meia altura para isolar a personagem e denotar, frontalmente, o absurdo do despertencimento. Em tese a quantidade de close-ups da protagonista serve para “protegê-la” (sempre temos a reação imediata de Jane diante de determinada situação, ou seja, o filme não a negligencia nem anula sua capacidade de responder emocionalmente ao que vê), mas na prática Jane, sempre desconcertada nos planos estáticos, depois de certo tempo passa a fazer parte da paisagem de morte do filme.

Em muitos aspectos, então, A Assistente é um filme bem parecido com o Shame de Steve McQueen, que submetia Michael Fassbender a uma rotina de autocontentamentos maquinais, num registro que buscava religar sua conexão emocional com o mundo, ao mesmo tempo em que cobria esse mundo com um véu de condenação moral que o tornava impermeável à experiência sensível. Da mesma forma, nada parece permeável a empatia no mundo mórbido de A Assistente, e se não fossem os pôsteres pendurados nas paredes sequer diríamos que o cenário do filme é uma produtora de cinema.

A partir do momento em que assumimos que A Assistente é mesmo um filme-autópsia - com toda a comodidade que isso implica, por ser um olhar que isenta Kitty Green de investigar afetos, conflitos e soluções além dos flagelos que testemunhamos friamente ao lado de Jane - é possível então perceber como a diretora se engaja na sistematização desse mundo. O fato de seu olhar ser distanciado não impede o engajamento; de longe, A Assistente inclusive define toda uma dinâmica espacial que é o que permite a lógica do abuso e da desumanização prosperar. Isso está na separação de salas, de mesas, de andares, mesmo de prédios (a cena-chave com o gerente de RH não seria tão eficiente se não fosse todo o percurso que Jane precisa traçar até chegar à sala).

Ou seja, por mais que A Assistente esteja se vinculando ao #MeToo - e parte do sucesso do filme em listas de melhores de 2020 pode muito bem ser colocada na conta de sua escolha temática e discursiva - é sobre todo o modus operandi do capitalismo que Kitty Green acaba tratando. O desenho espacial que ela faz do escritório não é estilizado ou metalinguístico como a cenografia de um filme de Wes Anderson, mas podemos ter com muita precisão, ao longo do vaivém de Jane num dia de trabalho, a noção do que torna o capitalismo tão impiedosamente eficiente, desde a organização piramidal do trabalho (o fato de Jane se situar no andar rarefeito do topo não foge ao olhar da câmera e isso fica inscrito nos espaços que sobram no enquadramento) até as estratégias de vigilância (as mesas dos outros assistentes estrategicamente posicionadas para cobrir os gestos e as fugas de olhar de Jane).

É daí então, depois dessa excelente demonstração de como otimizar e validar espacialmente as dinâmicas de coerção e abuso, que entendemos a função da protagonista. Jane não está no filme para, depois de uma jornada ininterrupta de 17 horas, despertar sua consciência ou fazer saber ao mundo seu drama, como naqueles filmes de sequestro e cerco tipo Um Dia de Cão. Na verdade - e vale pontuar aqui que Kitty Green vem de um repertório de documentarista antes de estrear na ficção - Jane não é muito mais do que nossa intérprete numa visita guiada, e a assistente faz conosco uma função que, no fim, não é muito diferente dos trabalhos ingratos de leva-e-traz que ela executa no filme em si.

Nota do Crítico
Bom
A Assistente
The Assistant
A Assistente
The Assistant

Ano: 2019

País: EUA

Duração: 87 minutos min

Direção: Kitty Green

Roteiro: Kitty Green

Elenco: Julia Garner

Onde assistir:
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