Das duas, uma: sempre que um filme ou uma série se propõe a navegar pelo universo transsexual através de uma personagem, ou seu foco é no “desabrochar de uma nova identidade de gênero”, ou a narrativa é o registro de uma figura excluída, à margem da sociedade. Manhãs de Setembro, nova produção original da Amazon Prime Video, que estreia nesta sexta-feira (25), tem como plano principal a vida de uma mulher trans, mas sem passar por transições ou falta de acolhimento.
A única “vida dupla” que acompanhamos da protagonista Cassandra é a jornada diária de motogirl durante o dia, e cantora de bar nas noites paulistanas pela noite — ofício que cumpre com maestria e com ajuda das melodias de Vanusa, sua musa maior, e cuja canção “manhãs de setembro” nomeia a série —. E pasme, estamos diante de uma mulher trans vivendo no auge: recém-chegada ao seu primeiro apartamento alugado, ela tem um namorado que a ama, Ivaldo (Thomás Aquino), além de uma rede de proteção formada por amigos fieis.
Para a cantora e atriz Liniker, que encara sua primeira protagonista, foi a possibilidade de criar um imaginário real através de Cassandra que despertou a vontade de embarcar no projeto ambicioso. “Poder compôr uma figura a partir de um ponto de vista regado de afeto e de proteção foi uma das coisas que mais me emocionou quando li o roteiro", contou em coletiva. "Ela tem relações humanas e sociais, fora do lugar 'engavetado' ou 'encaixotado' que muitas narrativas e olhares cinematográficos oferecem para mulheres pretas e trans”.
E nada parece quebrar o seu espírito da nossa leading lady, nem mesmo a visita surpresa de Leide (Karine Teles), com quem Cassandra se relacionou no passado, acompanhada de Gersinho (Gustavo Coelho), que diz ser filho da protagonista. A produção, essencialmente, quer amplificar as diferentes vozes e experiências de um Brasil tão vasto. “É algo muito complicado, já que estamos falando essencialmente de história humanas”, contou Malu Miranda, Head de Conteúdo Original para o Brasil do Amazon Studios.
Entretanto, é na própria Cassandra que a líder de originais enxerga uma história de fácil identificação e o chamariz para um grande público. “Ela é uma mulher complexa, mas livre e independente. É só mais uma pessoa querendo viver sua vida de forma autêntica e desimpedida”, diz, associando Cassandra com Fleabag, personagem-título da série britânica, e Miriam Maisel, de Marvelous Mrs. Maisel, rostos oficias de títulos premiados da empresa.
Claro que a tarefa não está somente em cima dos talentos envolvidos, como também para o Prime Video, que estreia a série simultaneamente em outros 140 países. Muito visada pela divisão nacional, Manhãs de Setembro foi destaque até mesmo em uma das edições de maio da Entertainment Weekly, o principal tabloide americano de cobertura de entretenimento. E assim como Transparent, criação de Joey Soloway, e tida como o verdadeiro divisor de águas para os estúdios do streaming, a criação de Josefina Trotta, e escrita ao lado de Alice Marcone e Marcelo Montenegro, quer mais é amplificar a experiência humana.
“Poder viver uma personagem travesti que tem uma casa já significa muito, vocês não têm ideia”, conclui Liniker, que vê em Cassandra a possibilidade de uma nova representação para todo um grupo. Além de esperança, muita esperança.