Que traumas envolvendo mães e pais forjam grandes super-heróis não é nenhuma novidade para quem já leu uma HQ de Batman, Flash, Homem-Aranha e por aí vai. Só que 2022 tem aos poucos se consolidado como o grande ano do escrutínio à paternidade nas histórias de capas e superpoderes, com algumas das principais adaptações audiovisuais de quadrinhos analisando essas relações a partir de diferentes, mas complementares ângulos.
Pegue Batman, de Matt Reeves, como exemplo. O primeiro grande evento cinematográfico do ano para os fãs da DC foi além da óbvia dor da perda de Thomas e Martha Wayne para lançar o mergulho mais agudo, já visto nas telonas, nos erros do casal. Desafiado pelo Charada (Paul Dano), o Bruce Wayne de Robert Pattinson é colocado no divã ao perceber que os pecados de seu patriarca desconstroem a imagem idônea que ele usou por anos como principal motivador de seu vigilantismo, usando o luto que daí nasce como catapulta para que o herói passe a ser de fato movido por heroísmo.
2022 também viu os problemas paternos sendo acentuados em personagens que os trazem como componentes menos óbvios de suas origens. Depois de ancorar toda a emoção do clímax de Guardiões da Galáxia (2014) na maternidade, e mover sua atenção para a paternidade em Guardiões da Galáxia Vol. 2 (2017), o cineasta James Gunn foi além na exploração da segunda temática em Pacificador. Tornando ainda mais aguda uma narrativa de abuso parental que marcava o personagem da DC nos quadrinhos, a série da HBO Max usou essa dor para humanizar e tornar carismático um dos principais antagonistas de O Esquadrão Suicida (2021).
Ambos nascidos em 1966, Reeves e Gunn são contemporâneos adeptos ao divã como ferramenta de geração de conflitos para os personagens de suas histórias. Mais do que arquitetos de cenas de ação e aventura, ambos são entusiastas de desafios psicológicos que coloquem à prova as convicções e os comportamentos de seus personagens. Tanto em Batman quanto em Pacificador, isso acontece para um mesmo fim: a desconstrução de um ideal tóxico de masculinidade. E é interessante ver como tudo isso dialoga com o trabalho dos mais jovens Eric Kripke e Taika Waititi em The Boys e em Thor: Amor e Trovão.
O primeiro, aos 48 anos, atua como showrunner na série que é hoje o principal hit do Prime Video no Brasil, e que usou a mesma fórmula empregada por Gunn em Pacificador (dotada de uma ironia ácida que Reeves não emprega em seu afetuoso Batman) para aproximar três personagens antagônicos, em sua terceira temporada: Billy Bruto (Karl Urban), Capitão Pátria (Antony Starr) e Soldier Boy (Jensen Ackles). Já o segundo, às vésperas dos 47 anos, transformou a paternidade em ferramenta de reflexão sobre vida e morte; essencial à busca por sentido que o Deus do Trovão (Chris Hemsworth) protagoniza em seu quarto filme solo no MCU. Tudo isso, claro, também encapsulado em humor.
Mencionar idades na contraposição dessas mentes criativas que hoje controlam importantes filões da cultura pop se justifica naquilo que eles mesmos expõem com suas obras sobre pais e filhos: as falhas que a sociedade em que vivemos, com suas estruturas predominantemente patriarcais e machistas, herdou a partir de gerações de homens emocionalmente subdesenvolvidos. Se turmas mais antigas de cineastas pop como a de Martin Scorsese e Brian De Palma dedicaram seus épicos à exposição dessas mazelas, nada mais natural que seus sucessores lançarem investigações às suas causas e efeitos.
Esse movimento caminha lado a lado com o avanço que o mundo e a masculinidade têm atravessado em entender a importância da saúde mental. Ainda um enorme tabu frente ao arquétipo sexista que segue guiando muitos homens ao redor do mundo, esse esforço pela melhor compreensão do ser tem visto um aumento relevante nos últimos anos. Só no Brasil, em 2021, surpreendentes 75% da população afirmaram ao instituto de pesquisa Ipsos terem como prioridade os cuidados psicológicos — ainda que saibamos como a prática costuma diferir da teoria.
É por isso que torna-se louvável o empenho de artistas em imbuírem a cultura de massa com narrativas que invoquem sensibilidade à questão. Se os homens e os pais do futuro terão muitos de seus anos formativos marcados pelo consumo de histórias de heróis, nada melhor do que apresentar a eles versões desses personagens que não só reflitam problemas e falhas reais, como também mostrem que o verdadeiro ideal a ser almejado é o da capacidade de enxergar e romper ciclos de violência, toxicidade e opressão que ferem a muitos, mas que só podem ser extintos por quem os propaga.
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Mais do que render boas histórias, esse tipo de cuidado eleva artisticamente os "filmes de hominho", pois conjuga em sua proposta de escapismo a reflexão. Resta torcer para que isso, nos próximos anos, evolua em grau e, principalmente, gênero. Para que vejamos cineastas que não sejam apenas homens heterossexuais terem também a oportunidade de esmiuçar, por meio da cultura pop, os muitos processos que moldaram a nossa realidade. E priorizar nisso temas que transcendam a masculinidade.