Frances Conroy e Evan Peters em American Horror Story Double Feature

Créditos da imagem: FX/Divulgação

Séries e TV

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American Horror Story: Double Feature faz uma das melhores estreias da série

Com pitadas de Stephen King e analogias assustadoras, retorno de AHS surpreende com melhor começo em anos

27.08.2021, às 09H46.

Boa parte das histórias de American Horror Story começam do mesmo jeito: alguém se muda para algum lugar onde o nó dramático da história está esperando para se desenvolver. Stephen King, que foi claramente uma inspiração para essa primeira parte da décima temporada da série, também tem uma recorrência em sua obra: ele gosta de cidades pequenas, frias, silenciosas, que ele conhece bem e que serão completamente isoladas do resto do mundo devido a algum acontecimento externo inevitável. American Horror Story: Double Feature, pegou esses dois pontos de partida e apresentou para o público a trama de “Red Tide”, que não só foi construída de forma surpreendente, como revitalizou a franquia nesse aniversário de 10 anos.

Murder House, Coven, Hotel, Roanoke e Cult, são todas temporadas em que a mudança dos personagens para um determinado lugar leva-os até os horrores que estão prestes a viver. Em Double Feature, Ryan Murphy e Brad Falchuk repetem o esquema, levando uma família clássica americana para terras que Murphy conhece muito bem: Provincetown. A área de Cape Cod não só é um destino bucólico e lírico, como também famoso por abrigar artistas que buscam por tranquilidade enquanto trabalham em suas obras. O próprio Murphy já declarou que é um frequentador do lugar.

A família Gardner chega até a cidade buscando a mesma coisa. Harry (Finn Wittrock) é um escritor, um roteirista que ganha a vida escrevendo episódios de séries procedurais (que como bem disse sua agente, são “dinossauros” na programação). Ele quer que seu próximo projeto seja um piloto que finalmente contenha sua voz. Sua esposa Doris (Lily Rabe) está grávida e também foi atrás de inspiração. Ela é decoradora e não consegue nenhum trabalho relevante há muito tempo. A filha do casal, Alma (Ryan Kiera Armstrong), sonha em ser uma violinista e está obcecada com a perfeição.

Apesar das grandes expectativas, a inicialmente acolhedora Cape Cod começa a soar deliberadamente sombria. A cidade está quase vazia, exceto por alguns poucos moradores e por estranhos transeuntes, sem cabelos, pálidos, com dentes afiados, que perseguem a família já nas primeiras horas de sua estadia. Assim, para eles o único lugar seguro é a própria casa, o que leva Harry, Doris e Alma a um estado de convivência pautado em irritações e paranoia, o que inevitavelmente remete às sequelas emocionais da pandemia. Isolados dentro de casa e, logo em seguida, incapazes de abrirem mão da cidade.

Musas

Em O Iluminado, Jack Torrance era um escritor fracassado que aceitava um emprego no isolado Hotel Overlook, nas montanhas geladas do Colorado; e que ia perdendo a sanidade conforme as forças sobrenaturais do lugar começavam a devorá-lo. Nas histórias de King, há uma constante relação entre entorpecentes e arte. Sendo ele próprio um alcóolatra, grande parte de seus protagonistas escritores (e são muitos) compartilham desse mesmo clichê: a ideia de que o artista precisa ser atormentado com vícios e auto-destruição para conseguir escrever com profundidade. Feliz ao chegar à cidade, Harry vive em bloqueio criativo. Até que a virada mais inesperada do roteiro expande as possibilidades.

Austin Sommers (Evan Peters) e Belle Noir (Frances Conroy) se apresentam a Harry como artistas de sucesso que todos os anos passam um tempo na cidade para produzir. Eles, então, oferecem à Harry a “musa”, uma droga sintética de origem desconhecida, que funciona como um esteroide de inspiração artística. Se a pessoa realmente tiver talento, a droga potencializa essa habilidade e leva seu “hospedeiro” ao sucesso. Se a pessoa não tiver talento, mas tomar a droga mesmo assim, ela se torna uma dos “hacks”, aquelas criaturas assassinas sem humanidade que perseguiram a família logo no começo do episódio. O sucesso, é claro, tem um preço. A droga elimina substâncias essenciais para a vida que correm no sangue humano. Sendo assim, é preciso ingerir mais, de fontes vivas, para continuar produzindo.

twist revigora a franquia de maneira impressionante. Por todo o primeiro episódio (foram liberados dois de uma vez) a sensação é de que a temporada vai caminhar pela dinâmica pouco atrativa de uma perseguição entre criaturas e humanos. No episódio 2, tudo ganha uma outra proporção. Pitadas de O Iluminado se encontram com a história de vampiros de Salem's Lot e tudo isso desemboca no jogo tenso e cruel de Coisas Necessárias, onde para ter aquilo que queria muito, a pessoa precisava cometer alguma transgressão possivelmente mortal. O mundo de Stephen King casa perfeitamente com o mundo de American Horror Story.

A discussão sobre o preço de se dominar as propriedades da inspiração ronda o texto de forma provocativa. Sarah Paulson surge vivendo uma viciada transfigurada que sabe da droga, mas não tem coragem de tomá-la, preferindo amargar a própria existência como uma artista plástica frustrada e ambulante. Ao lado dela, Macaulay Culkin vive de ceder os pulsos para Belle Noir se alimentar eventualmente, mas está disposto a tomar a pílula e tirar a prova do próprio talento. É uma sensação de suspense fascinante. A história pune o talento com sangue e sacrifica mais ainda os posers, os iludidos e suas ideias de própria importância. Os desdobramentos psicológicos e as analogias com a engrenagem da indústria quase imploram para serem percebidos.

É inevitável não pensar no que você mesmo faria caso lhe fosse oferecida a mesma possibilidade. Harry até pensa em desistir, mas para um artista é impossível resistir ao aplauso. Seu primeiro roteiro ganha sinal verde, ele é elogiado, celebrado; e até Joaquim Phoenix se oferece para trabalhar na obra mesmo que fosse de graça. É como se Murphy olhasse para dentro do próprio baú de seduções, brincando com a audiência de especular sobre sua hiper produção, sublinhando as “carniças” que deixou pelo caminho em nome do entretenimento, numa autocrítica poderosa e no melhor estilo AHS. Ou seja, deliciosamente alegórica.

Sem dúvida, a estreia de Double Feature foi uma maneira honrosa de celebrar os 10 anos da antologia, não só pelo retorno de grande parte do elenco original, mas também porque os episódios foram bem cuidados, tem uma direção segura, uma trilha sonora irresistível e um roteiro que mais uma vez emula clássicos do horror, ícones do horror, de uma maneira inesperada. Se Murphy e Falchuk tomaram a pílula não poderemos saber, mas com licenças macabras ou não, as nove musas da mitologia grega passaram por ali.  

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