A versão de Cowboy Bebop com atores de carne e osso está longe de ser uma unanimidade, mesmo com muita expectativa e esforço por parte dos produtores. A recepção mista reacendeu o antigo debate sobre adaptações americanas de produções japonesas, sempre ilustrado por alguns exemplos difíceis de defender como Dragon Ball Evolution ou mesmo o Death Note da Netflix. Será mesmo impossível adaptar um anime ou um mangá para uma versão com atores reais? Talvez não.
Há muito mais tempo as produtoras asiáticas usam como matéria prima alguns animes e mangás de sucesso para produzir séries e filmes, e alguns resultados são bastante positivos. Mesmo assim ainda há um preconceito do público com essas produções, o que indica que o problema é também outra coisa.
Adaptações americanas são ruins?
A versão de Cowboy Bebop produzida pela Netflix tinha tudo para ser a nova queridinha dos otakus, um sinal de que é possível desenvolver uma adaptação americana de um clássico dos animes. Criado por Christopher Yost, do ótimo Thor: Ragnarok, o live-action parecia ter tomado todo o cuidado possível para apresentar os cowboys do espaço para um novo público sem desagradar quem já era fã: escolheram um elenco diverso para refletir os personagens, houve muito trabalho para reproduzir as batalhas e locações da série espacial e inclusive se esforçaram para recriar a icônica abertura. Infelizmente, isso não foi o bastante para muitos dos espectadores.
Houve quem chamasse o Cowboy Bebop da Netflix de “produção sem alma” por apenas replicar visualmente o que já era visto no anime, sem nem ao menos tentar entender o “espírito” da série original. Além disso é possível encontrar críticas a diálogos, alguns mais próximos a Seinfeld que ao anime de Shinichiro Watanabe, e também a algumas interpretações exageradas. A personagem Ed (Eden Perkins), por exemplo, estava mais próxima de uma apresentação de cosplay em evento de anime do que de uma personagem verossímil naquele universo da série.
Um dos principais problemas nas adaptações americanas acaba sendo a mudança da essência da série original. Não há problema em mudar radicalmente uma história de origem, personalidades ou caracterização, os filmes da Marvel estão aí para mostrar isso, mas o tom da produção é algo bastante importante de se respeitar. Um dos exemplos mais infames é o de Dragon Ball Evolution, cuja trama colegial está mais próxima de um filme do Homem-Aranha do que do anime original.
Certo, Dragon Ball Evolution é um exemplo extremo da adaptação equivocada, então precisamos listar as produções que chegaram mais perto do ideal. Alita - Anjo de Combate e A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell foram filmes que respeitaram em boa parte a essência de suas obras originais, embora mesmo assim tenham passado longe de uma aclamação popular. Vale também destacar que ambos os longas renderam debates sobre decisões cinematográficas questionáveis, como o “olho de mangá” da protagonista do primeiro exemplo e a escalação de Scarlett Johansson para interpretar uma asiática no segundo.
E as adaptações asiáticas?
Akira Kurosawa à parte, o cinema japonês está longe de ser um sucesso estrondoso como o norte-americano, mas isso não impede que seus produtores e diretores consigam entender melhor a essência dos mangás na hora de transpor essas obras para o formato do live-action. O Japão tem um longo histórico de adaptações de mangás e animes para o cinema, principalmente a partir dos anos 1970. Mangás de sucesso como Golgo 13, Lobo Solitário, Lupin III, Gen Pés Descalços, Black Jack e outros abriram as portas para um mercado bem fértil, o das adaptações.
Outras produções esporádicas apareceram nas décadas seguintes, mas foi a partir dos anos 2000 que novas produções importantes foram aparecendo, como adaptações de Cutey Honey, Death Note, Nana, 20th Century Boys e por aí vai. Além de histórias mais "pé no chão" como Usagi Drop, as adaptações de histórias de luta foram se multiplicando, até por conta do auxílio da computação gráfica e melhora nos efeitos especiais.
Pouquíssimos desses filmes chegaram ao ocidente, e ainda menos no Brasil. No começo precisávamos contar com boa vontade de distribuidoras, que às vezes tinham a proeza de renomear filmes de Initial D para “Racha - Velocidade sem Limites”, mas com o tempo foram surgindo empresas interessadas em trazer essas adaptações para o nosso mercado de home vídeo ou no cinema.
A grande guinada veio com o advento dos serviços de streaming, que não só facilitou a vinda desses filmes como ainda entregou adaptações mais fiéis e dublagens para o português. Atualmente existe um catálogo muito interessante com adaptações cinematográficas inspiradas em mangás e animes na Netflix, que conta com filmes como Bleach, Fullmetal Alchemist e os cinco longas da série Rurouni Kenshin - Samurai X.
Certo, mas e a qualidade dessas adaptações? Não dá para generalizar e colocar todas em um mesmo balaio, mas podemos encontrar algumas coisas bem interessantes. Enquanto as versões com atores de Fullmetal Alchemist e Attack on Titan arrancam risos involuntários com histórias confusas e umas perucas engraçadas, percebe-se com Bleach e Rurouni Kenshin como os asiáticos estão dominando a arte da transposição do mangá para as telonas, com cuidado e respeito ao original.
Mesmo com as polêmicas sobre seu criador, os filmes de Rurouni Kenshin são incríveis pois sintetizam o que se entende como uma boa adaptação. A série cinematográfica precisou adaptar (e cortar) muitos pontos da história de Nobuhiro Watsuki, até para se adequar à duração dos longas, e mesmo assim ainda se preocupou em agradar tanto o público novo quanto quem já conhecia Kenshin Himura do anime e do mangá. Os filmes de Rurouni Kenshin ainda surpreendem com excelentes cenas de ação, que usam pouquíssima computação gráfica e mais efeitos especiais práticos.
Outro filme que gostaria de citar como bom exemplo é The Promised Neverland, lançado em 2020 no Japão. Nessa adaptação do mangá criado por Kaiu Shirai e Posuka Demizu, o longa-metragem adaptou com muita competência todo o primeiro arco da história, aquele que se encerra na tão esperada fuga das crianças. O filme ainda se destaca por causa das cenas de suspense, capazes de amedrontar o espectador com closes e interpretações muito boas das antagonistas Isabella (Keiko Kitagawa) e Irmã Krone (Naomi Watanabe). A repercussão entre os fãs foi um pouco mista, algumas críticas foram feitas a respeito da mudança de etnia da Krone, afinal a personagem originalmente é negra no mangá, mas é possível que a troca tenha acontecido para evitar polêmicas ainda maiores por conta da representação vista como racista utilizada na criação da personagem no mangá.
A receptividade (ou não) dos fãs
Uma grande diferença entre as adaptações norte-americanas e as asiáticas é a forma como os fãs recebem as mudanças propostas pelos estúdios. Ainda é muito comum no meio otaku se pedir um filme que seja 100% fiel ao original, quando não faz o menor sentido exigir algo assim. Alguns fãs consideram todos os pedaços da obra original como fundamentais para a obra, quando o trabalho de adaptação para o cinema envolve realizar alguns cortes e mudanças.
Death Note teve várias versões produzidas com atores de carne e osso, mas vamos usar duas como exemplo. Dirigido por Shusuke Kaneko em 2006, o primeiro filme japonês Death Note é uma livre interpretação da história original lançada nas páginas da Shonen Jump. Muitos dos elementos da história estão ali, mas o desenvolvimento é diferente: todo o clímax do filme envolve uma situação criada exclusivamente para o longa-metragem. Num geral, o filme é bastante querido pelos fãs por manter intacta a essência da obra, ainda que mudando os acontecimentos que levam a essa essência. Já a versão americana da Netflx, bem...
Montagem: Divulgação
Comparando com outros filmes para adolescentes produzidos pela plataforma, o Death Note da Netflix não é de todo ruim. Seu maior pecado foi ter “prometido” uma adaptação da história original, inclusive nomeando de “Light” e “L” os dois principais personagens do filme. Talvez se os dois tivessem outros nomes, fosse capaz do público embarcar na trama como se fosse uma nova história no universo de Death Note, com Ryuk passando o caderno para um adolescente muito diferente de Light Yagami. Inclusive uma das críticas na época, o fato de Light ter ficado assustado com a aparição do shinigami, não existiria se tivessem deixado claro que aquele não era o sociopata da história original.
Essa briga entre expectativa de fãs e realidade acaba inclusive comprometendo ótimas adaptações, como foi o caso de Speed Racer de 2008. Dirigido pelas irmãs Wachowskis, o filme é bastante diferente do anime original dos anos 1960 por colocar os personagens em uma ambientação futurista e com uma trama um pouquinho mais complicada de se entender que as histórias bobinhas do anime original. Isso foi o bastante para ser considerado um “sacrilégio” com o original, e por isso recebeu uma forte rejeição por parte dos fãs. Muitos anos após o hype criado na época, hoje já enxergamos Speed Racer como uma das melhores adaptações de anime para o cinema em live-action, infelizmente injustiçado por ter fugido do anime com o objetivo de capturar a “essência” do original.
Claro que um filme ruim não pode ser salvo apenas pela boa vontade do público, mas talvez os espectadores deveriam perceber dois pontos muito importantes. Em primeiro lugar, falta aos otakus uma compreensão que os fãs de quadrinhos de heróis já têm: uma adaptação em live action não tem a obrigação de ser uma reprodução exata do original, afinal o original já existe e está ali intacto. Precisamos entender também que há limitações físicas e que nem toda maluquice criada e desenhada pelo autor da história é possível ser transposta. E, por fim, é necessário lembrar que o filme não foi feito para os fãs antigos, e sim para um novo público que pode até mesmo ser atraído para o material original. Com esses dois pontos em mente, talvez os otakus conseguissem aproveitar melhor algumas releituras e adaptações de obras que eles já conhecem de outras formas.
- Cowboy Bebop: Principais diferenças entre anime e live-action
- O que funcionou e o que não funcionou no Cowboy Bebop da Netflix
- Cowboy Bebop, da Netflix, é decepção amarga
Dicas de filmes
Muitas produções foram citadas neste artigo e merecem ser vistas:
Rurouni Kenshin - Samurai X: os primeiros 3 filmes da série Rurouni Kenshin - Samurai X estão disponíveis na Netflix, Prime Video, Looke e Telecine. Os dois filmes que fecham a série são exclusivos da Netflix.
The Promised Neverland: a adaptação da (assustadora) história do orfanato Grace Fields está em cartaz na Mostra de Cinema Japonês 2021 da Fundação Japão. Você consegue maiores informações como datas e filmes nesta nossa matéria.
Speed Racer: o (injustiçado) filme de Speed Racer está disponível no catálogo do HBO Max e no Oi Play.
Bleach: quer conferir essa ótima adaptação de Bleach? O filme está no catálogo da Netflix.
Alita - Anjo de Combate: considerada uma das adaptações cuja produção foi mais enrolada, Alita pode ser vista no catálogo do Star+.