O filler é uma das unanimidades no meio otaku, pois quase todos os fãs entendem que se trada de algo a se evitar. Mas se filler é algo tão ruim assim, por que até hoje tantos estúdios fazem uso desses episódios enrolativos em suas produções? Para entender isso, é preciso saber como tudo começou.
O que é um filler?
Tecnicamente um filler é um episódio de anime cuja história não aparece no respectivo mangá, tramas nas quais vemos os animadores criando um desenvolvimento inédito e coerente com a história original, às vezes envolvendo a criação de personagens novos. Lembra quando Goku participou de um torneio no além, após seu sacrifício na luta contra Cell? Nada daquilo apareceu na versão em quadrinhos e foi criado exclusivamente para a televisão. Essas histórias extras têm um objetivo muito específico: "enrolar" o anime.
Dragon Balll Z/Toei Animation/Reprodução
Normalmente um mangá ganha um novo capítulo todas as semanas, assim como um anime tem seus episódios exibidos a cada sete dias. No entanto, cada episódio do anime costuma ser composto de dois ou três capítulos do mangá, então a conta não fecha: se o anime seguir esse ritmo mais acelerado, rapidamente ele alcança o mangá e fica sem histórias para adaptar. Sendo assim, passou a ser normal a criação de extras pelos estúdios para dar tempo do autor desenhar mais. O único requisito de um filler é não afetar a trama criada pelo autor, ou seja, não podemos ter personagens importantes morrendo ou tomando decisões que mudarão o futuro já planejado pelo autor.
Há várias formas de se criar histórias extras, podendo ser como um único episódio ou mesmo um arco inteiro. Em Dragon Ball Z, quando a Toei precisava dar tempo para Akira Toriyama ter uma frente de novas histórias, os artistas do estúdio usaram uma ilustração oficial do autor para pensar em uma trama na qual Goku e Picolo participam de uma aula de direção. O anime também teve seus arcos filler, como quando o vilão Garlic Jr (criado originalmente para um filme não-canônico) ataca a Terra e os Guerreiros Z, ou todos os desafios que Bulma, Kuririn e Gohan enfrentaram antes de chegar ao planeta Nameku-sei.
Dragon Balll Z/Toei Animation/Reprodução
Os fillers existem até hoje?
Se o já citado Dragon Ball Z mostrou um uso consciente e responsável das histórias extras, animes como Naruto mostraram como os fillers podem incomodar as pessoas. O site Anime Filler List, criado unicamente para listar episódios fillers de anime, coloca Naruto e Naruto Shippuden como produções com altas doses de enrolação. De acordo com os dados apresentados, as aventuras do jovem ninja loiro tem 41% de seus episódios compostos por histórias inéditas criada pelo Studio Pierrot, um índice bem elevado se comparado a outros animes populares.
Naruto/Studio Pierrot/Reprodução
Embora alguns desses extras de Naruto tenham agradado os fãs, muitos se recordam de momentos bem bizarros, como a vez na qual o Pierrot inventou um episódio no qual o protagonista interagia com um avestruz ninja, tudo para enrolar com a história. Sim, no caso de Naruto podemos dizer que o plano do Pierrot era estender a duração do anime (e de seu sucesso) ao máximo. Tanto que a série animada foi terminar muito tempo depois do mangá, com filler até para mostrar a festa de casamento do Naruto com Hinata e já emendando a produção de uma continuação direta, Boruto.
Atualmente os estúdios sabem que um filler pode prejudicar um anime, e isso pode ter afetado a forma como as produções são pensadas. Em vez de animes infinitos e cheios de filler, tem sido mais comum vermos séries sendo lançadas por "temporadas", como é o caso de My Hero Academia ou Attack on Titan. Nesses exemplos as produções esperam o autor produzir uma quantidade razoável de história para só então o anime ser feito em blocos de menos episódios, algo que facilita a venda para outros países e serviços de streaming.
Boruto/Studio Pierrot/Reprodução
Mesmo assim não quer dizer que fillers tenham sido abolidos dos desenhos japoneses. Animes contínuos, como Boruto, ainda têm boa parte de histórias extras (76%, segundo o site Anime Filler List). Já One Piece consegue evitar sagas extras criando "cenas filler", além de truques de direção que deixam os episódios quase 1:1 com os do mangá.
Existe filler em mangá?
Essa é uma pergunta bastante complicada, pois filler se trata unicamente de histórias extras em animes baseados em mangás. Dessa forma, não podemos dizer que animes criados para televisão (como Pokémon) ou mangás têm histórias filler. Porém, nos quadrinhos há algo ali bem parecido: histórias canônicas que não fazem a trama ir para frente.
Yu Yu Hakusho/Shueisha/Reprodução
Nos títulos da Shonen Jump, é bem comum o autor começar sua série com várias histórias curtinhas, com o objetivo de apresentar aos leitores o universo da história. Em Yu Yu Hakusho, o mangaká Yoshihiro Togashi criou várias missões rapidinhas para o jovem fantasma Yusuke Urameshi provar seu coração puro. Por não acrescentarem nada à trama geral da série, essas histórias acabaram excluídas da adaptação feita pelo Studio Pierrot.
Inuyasha/Sunrise/Reprodução
Um exemplo muito bom de "filler" em mangá é em InuYasha, pois há um arco no qual o vilão Naraku está se recuperando após a mais recente derrota. Enquanto o vilão principal está no banco de reservas, surge para o grupo de heróis uma nova ameaça na forma do grupo Shichinintai. A história é canônica no mangá e criada pela autora Rumiko Takahashi, mas esse arco não avança em nada à história de InuYasha. O grupo dos sete mercenários entrou em campo apenas para que Naraku ganhasse tempo para se recuperar, então de alguma forma era algo para "enrolar".
O que faz um bom filler?
Assim como um sommelier avalia todos os aspectos de uma taça de vinho, existe aqui no Brasil um apreciador de fillers de animes. Marcelo "Sahgo", a pessoa por trás do Canal do Sahgo no YouTube, faz análises de animes em diversos vídeos, mas uma seção do canal recebe um carinho especial: a Falando Filler.
Até a publicação da matéria, Sahgo produziu 25 vídeos analisando episódios extras de uma infinidade de animes já exibidos no Brasil. Da vez em que Bulma enfrentou uma caranguejo gigante em Dragon Ball Z até uma história sobre desmatamento inserida do nada no meio de Shaman King, nada escapou aos olhos do admirador dessas criações exclusivas para anime. Com essa experiência, podemos dizer que ele sabe os ingredientes de um episódio enrolativo: "Um bom filler pra mim é aquele que utiliza os personagens de um jeito divertido", explica Sahgo, "a história não pode ir pra frente, mas os personagens estão lá e são pre-estabelecidos. Dá para brincar com eles, colocá-los em situações únicas".
Já os motivos que levam um estúdio a produzir um filler de baixa qualidade parecem ser coerentes com as opiniões de otakus em fóruns na internet. Sahgo detalha que as piores histórias são as que contradizem o cânone ou que reciclam elementos da história canônica, sem muita inventividade. "É uma perda de tempo que te faz lembrar de momentos melhores", justifica.
Bons exemplos de fillers
Às vezes o filler pode ser tão bem feito que faz o anime ter um tom diferente do mangá original. No anime clássico de Sailor Moon, parte do sucesso das guerreiras da Lua veio por causa da adaptação "arrastada" feita pela Toei Animation. O mangá original trazia curtos capítulos mensais, e coube ao estúdio de animação encorpar a produção.
Sailor Moon/Naoko Takeuchi/Toei Animation/Reprodução
A Toei criou muitas histórias extras, personagens novos e aprofundou os laços entre as protagonistas em tramas não-canônicas. Se a autora Naoko Takeuchi parecia deixar as demais sailors de lado, a Toei deu uma personalidade mais distinta para todos os personagens secundários, dando ainda mais vida para Sailor Moon.
Uma produção mais recente com boas histórias filler é My Hero Academia. Para começar, todo primeiro episódio das temporadas é uma invenção do estúdio com o objetivo de refrescar a memória do público a respeito dos poderes dos personagens da 1-A. Em cada temporada eles arranjam um filler novo para cumprir essa função, tendo já apresentado um episódio de piscina e uma história sobre um repórter investigativo. Um filler bem elogiado foi o episódio criado para mostrar o estágio de outros personagens da turma, afinal o mangá focou apenas em mostrar como o protagonista Izuku Midoriya se aperfeiçoou.
My Hero Academia/Bones/Reprodução
Maus exemplos de fillers
Por sua quantidade elevada de episódios extras, Naruto tem até rankings de piores fillers discutidos por fãs na internet. Um dos episódios lembrados em discussões em vários fóruns é o 281º da série Naruto Shippuden, aquele no qual as mães da Vila da Folha se unem para para enfrentar um grupo de lutadores de sumô durante a Guerra Shinobi. Como se pode ver, não é preciso assim tanto critério na hora de criar um antagonista de filler.
Há também quem defenda que o episódio do avestruz ninja atingiu o ápice da ruindade e da aleatoriedade do universo de Masashi Kishimoto, sendo considerado um dos piores de toda a série. Outras enrolações bem lembradas pelos fãs são os "recap", aqueles episódios nos quais o anime pausa a trama principal para relembrar grandes momentos até então. Em um deles, Naruto e Sakura aparecem em um cenário mostrando trechos da luta em um monitor, como se eles apresentassem uma espécie de Vídeo Show.
Naruto/Studio Pierrot/Reprodução
Naruto teve sim muito filler, mas ao menos conseguiu ser concluído, uma sorte que Kenshin Himura de Rurouni Kenshin - Samurai X não teve. Após a derrota de Makoto Shishio no Arco de Kyoto, o anime precisou criar uma infinidade de episódios fillers para Nobuhiro Watsuki prosseguir com o arco seguinte no mangá. A equipe da animação até criou um novo vilão cristão, o samurai Shogo Amakusa, para segurar as pontas, mas o anime precisou ser encerrado sem animar o esperado arco final, no qual o retalhador enfrenta Enishi.
Reprodução
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Seja algo bom ou ruim, o importante é que os fillers têm uma importância vital no método de produção dos nossos queridos animes. Mesmo sem os dedos dos autores, são histórias que tentam emular aquela sensação que temos acompanhando uma história original. Se o resultado é bom ou mau, fica a critério dos fãs. Felizmente sites de fãs como o Anime Filler List existem e permitem que o otaku acompanhe somente os episódios canônicos e importantes de cada série.