Quem tem mais de 30 anos e é fã de animes e mangás começou nesse universo num cenário bem diferente dos anos mais recentes, assistindo a alguma mídia dublada na TV aberta. Eram títulos como os tokusatsus Changeman, Jaspion e Jiraya, além de animações como Sailor Moon, Dragon Ball, Cavaleiros do Zodíaco e Naruto, que passavam do fim dos anos 1980 até o início dos anos 2000 em redes como a extinta TV Manchete, Globo, SBT, MTV e Band, e em canais a cabo como o Cartoon Network.
Mas os otakus mais velhos viram essa era de ouro das animações japonesas no Brasil se extinguir aos poucos, chegando a um ponto em que, em 2010, praticamente já não passavam animes na TV aberta ou fechada, com exceção de alguns parcos quadros na madrugada, mas com uma audiência bem menor do que em anos anteriores. Não havia mais renovação, nostalgia, dublagem.
O nicho otaku então se acostumou e se limitou a assistir às animações de formas alternativas ou assinando planos nas plataformas de streaming. A primeira a chegar ao Brasil foi a Crunchyroll, em 2012. Nos anos seguintes tivemos a Netflix, Hidive e o Amazon Prime Video. E enfim temos a Funimation, que chegou no fim de 2020.
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Junto com essas novas plataformas, estão de volta também os animes com áudio em português, o que tem se tornado uma tendência nos serviços de streaming e na TV aberta. “Nos anos 1990 a gente tinha só um punhado de animações e dubladores na TV aberta, por isso guardamos vozes tão icônicas. Hoje é possível consumir, além da TV aberta, animações na TV a cabo e nas plataformas de streaming também. Ou seja, temos mais dubladores atuando, mais estúdios e mais opções de consumo”, comenta Guilherme Marques, diretor de dublagem dos animes da Funimation.
O ressurgimento
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A dublagem de animes no Brasil começou a reaparecer em 2017, com a Crunchyroll, mas ainda de forma discreta, consolidando-se somente em 2020.
Em 2017, a Crunchyroll fez um teste e dublou três obras: Rokka no Yuusha, Yamada-kun to 7-nin no Majo e Schwarzes Marken. Segundo Yuri Petnys, líder de marketing da Crunchyroll no Brasil e Portugal, a recepção foi positiva e eles se sentiram mais seguros para continuar o projeto.
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De acordo com Petnys, a volta da dublagem seguiu a estratégia internacional da plataforma. “Dublagem sempre foi muito requisitada. Nos Estados Unidos, ela é muito comum, porque quase todo conteúdo que passa lá é de língua inglesa. Eles não costumam consumir mídias com legendas”, explica.
Além disso, são comuns no meio otaku os fandoms voltados aos seiyuus (profissionais japoneses de dublagem), com muita gente torcendo e falando sobre a performance dos atores. Algo semelhante acontece com os dubladores brasileiros, o que também alimentava o desejo dos fãs pela volta da dublagem.
A prova disso é a própria aceitação das dublagens de obras como Boku no Hero e Ataque dos Titãs, promovidas recentemente pela Funimation em parceria com a Dubrasil. “O retorno de forma geral foi e está sendo muito positivo tanto da própria Funimation quanto dos fãs, que nos recepcionaram tão bem”, salientou Bruno Sangregorio, produtor, ator e dublador da Dubrasil.
Mas nem tudo é fácil.
O processo
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Petnys conta que o processo de dublagem é mais caro e demora mais do que o trabalho de legendagem. “É bem difícil a gente conseguir fazer uma simuldub, ou seja, uma dublagem totalmente simultânea, que seja entregue em um tempo razoável para o público. Nesse caso, a gente vai priorizar a legendagem para depois partir para a etapa de dublagem, que vai chegar algum tempo depois”.
E aos que temem que as novas dublagens dominem toda a indústria, muita calma, pois os trabalhos de legendagem sempre vão existir. “Não é uma batalha entre formatos [legendado ou dublado] e sim ampliar as opções. A dublagem tem um importante papel de inclusão, seja para pessoas com deficiência (PCDs), crianças ou disléxicos, então ela abre portas para mais públicos”, completa Marques.
É importante também pontuar como o mercado japonês é diferente dos Estados Unidos, Brasil ou Europa. Aqui, por exemplo, a Globo faz gravações antecipadas dos episódios das novelas para ter um fôlego na transmissão. No Japão, quem assistiu o anime de Shirobako ou leu Bakuman sabe que lá é tudo resolvido e feito na semana. Então, a América Latina e o Ocidente como um todo recebem os arquivos originais japoneses pouco tempo antes deles serem lançados por lá. Coisa de um dia ou mesmo apenas horas.
Portanto, fazer essa dublagem simultânea é impossível. A chance de erros e a falta de cuidado podem estragar e desrespeitar completamente a obra. Ainda assim, há exemplos de animes de temporada que receberam dublagem, como é o caso de Ataque dos Titãs Temporada Final e Yashahime: Princess Half-Demon. Não se encaixam em simuldub, mas o processo de entregar uma dublagem mais rápida existe.
Mas, no geral, é um trabalho que demanda tempo e planejamento, com uma série de envolvidos, bem diferente de uma legenda.
TV aberta
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Além do pedido constante da comunidade por dublagens, a Crunchyroll também buscava ocupar um espaço na TV aberta, onde já não havia mais transmissões de mídia asiática, a não ser casos bem específicos na TV paga, como Dragon Ball Super, transmitido no Cartoon Network.
“Só com uma dublagem é possível ter um espaço na TV aberta. Ninguém quer ligar a TV e ver algo com legenda. Na TV fechada até tem as opções de você ver no áudio original, mas também é preciso ter uma versão dublada para dar mais oportunidade e acessibilidade ao público”, explica Petnys.
E de fato a Crunchy, em 2019, fechou acordos com a Rede Brasil, criando o quadro “Crunchy TV”, para transmissão de uma hora de animes cinco dias por semana. Foi com essa parceria, que acabou em novembro de 2020, que as coisas começaram a andar de forma mais sólida no meio da dublagem.
Entre a lista de dublagens de 2020 na Crunchyroll tivemos JUJUTSU KAISEN, TONIKAWA: Over the Moon for You, Noblesse, I'm Standing on a Million Lives e Onyx Equinox. Para 2021, a lista dos primeiros animes dublados inclui a nova temporada de Dr. STONE, So I'm a Spider, So What?, The Hidden Dungeon Only I Can Enter, Burn the Witch e o segundo cour de JUJUTSU KAISEN.
Porém a Crunchy não é mais a única plataforma com dublagens. Ainda que não seja especializada em cultura pop japonesa, a Netflix dublou uma série de animes nos últimos anos, e a plataforma trouxe o popular One Piece, com pouco mais de 60 episódios dublados.
Por lá, é possível também assistir versões dubladas de Yo-kai Watch, Great Pretender, Japão Submerso, Dragon’s Dogma, Dorohedoro, Beastars, Neon Genesis Evangelion, Carole & Tuesday, BNA e muito mais.
Com tantas opções de transmissão, a TV aberta está começando a se interessar novamente pelos animes. Recentemente, a estreante Loading TV anunciou a chegada de Sakura Card Captors e Ranma ¹/² dublados.
E as novidades não pararam por aí. Em dezembro, a Loading anunciou parceria com a Crunchyroll para levar mais de 50 animes para a televisão aberta. A emissora terá um horário próprio para transmissão de diversos animes, entre eles Tower of God e The God of High School, além de fazer com exclusividade as dublagens de 91 Days e Given. Outros animes também devem ser dublados no futuro.
A Funimation
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No fim de 2020, somou-se a esse cenário a chegada da Funimation, já em um contexto em que as dublagens de anime se tornaram comuns. Para fazer uma concorrência equilibrada com as outras empresas, a Funimation Brasil abriu seu catálogo já com algumas versões dubladas de seus animes, como Assassination Classroom, Steins;Gate, Tokyo Ghoul e Boku no Hero Academia.
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Segundo Guilherme Marques e Bruno Sangregorio, da Dubrasil, o estúdio que coordena e produz todas as dublagens da Funimation, para que isso fosse possível, o planejamento começou entre fevereiro e março de 2019, quando a plataforma iniciou a procura por estúdios. Ao todo a plataforma possui oito dublagens, todas realizadas pela Dubrasil - enquanto a Crunch já trabalhou com estúdios diferentes, como Som de Vera Cruz, Unidub e Wan Marc.
E a Funimation também fechou uma parceria com a Loading TV. De acordo com as duas empresas, cerca de 30 animes devem chegar ao catálogo da emissora. Ataque dos Titãs e Boku no Hero Academia, inclusive, já estão sendo transmitidos totalmente dublados.
Com a expansão das dublagens, a cultura pop japonesa vai se tornando cada vez mais acessível tanto para os fãs de animes quanto para o público mais geral, que poderá conhecer a maior indústria de animação do mundo. E para quem gosta da voz original, como Petnys bem lembrou, “vai continuar lá, como sempre foi”.