Nunca foi tão fácil assistir anime no Brasil. Se no passado era necessário torcer pela boa vontade das emissoras de TV ou distribuidoras de DVDs, atualmente o otaku precisa apenas esperar os serviços de streaming lançarem de forma quase simultânea ao Japão boa parte dos animes da temporada. "Boa parte"? Sim, "boa parte".
Se cerca de 80% dos animes da temporada chegam a nós pela Crunchyroll, Netflix, HBO Max, Star+ e por aí vai, o que acontece com esses 20% que não chegam até a gente? E o que acontece quando dentro dessa porcentagem pequena está algum anime que queremos muito assistir? Essa é a hora de falar sobre um problema real, o drama do limbo dos animes.
Por onde anda Bleach?
A atual temporada de animes, de outono de 2022, já entrou para a história como uma das mais recheadas de produções interessantes, com séries já aclamadas como Chainsaw Man, Mob Psycho 100 III, My Hero Academia e o anime das garotas marceneiras Do It Yourself!!. Mas há um anime em especial nessa temporada que acabou sofrendo mais que o Naruto no balancinho, e estamos falando do aguardado Bleach: Thousand-Year Blood War. Lançada quase 10 anos após o término do anime original de Bleach, essa temporada promete adaptar os acontecimentos do arco final do mangá de Tite Kubo com uma paciência e desenvolvimento ausentes na obra original.
Um dos feitos de Bleach neste período de ausência foi angariar novos fãs mesmo sem um anime inédito sendo lançado, algo que ocorreu graças aos serviços de streaming que disponibilizaram a série original. Desde o anúncio da nova temporada de Bleach os fãs foram tomados por um espírito de expectativa e esperança, algo não visto desde que o autor publicou capítulos da “continuação” Burn the Witch. Os fãs vibraram por cada anúncio de staff, revelação de quantidade de episódios e detalhes da trilha sonora, mas uma notícia em especial trouxe um ar de preocupação: corria pelos corredores da Soul Society uma informação sobre a Disney ter demonstrado interesse em adquirir os direitos dessa nova temporada de Bleach. O receio se tornou real quando a VIZ Media, responsável pelo licenciamento da obra no ocidente, confirmou a compra dos direitos de distribuição mundial pela empresa do rato.
Semanas se passaram na mais pura incerteza. Embora houvesse uma torcida para que a Disney disponibilizasse por aqui os episódios semanalmente (como faz com as séries de Star Wars ou do Universo Cinematográfico da Marvel), nunca houve um lançamento semelhante nesse formato para anime. Havia o receio de Bleach ter o mesmo destino do anime Summer Time Rendering, lançado no Japão no começo do ano e licenciado pela Disney para o Star+ brasileiro. A produção ganhou um título nacional (A Ilha das Sombras), teve dublagem brasileira disponibilizada no Star+ de outros países e tudo, mas até o momento nada de ser lançada no Brasil.
O jornalista Pedro Henrique Ribeiro aqui do Omelete entrou em contato com a Disney para descobrir o destino de Bleach na plataforma, mas teve como resposta um desanimador "por enquanto não temos nenhuma informação a respeito do lançamento desse título no Brasil". A situação parecia ter mudado em 3 de outubro, quando o perfil oficial da VIZ Media publicou um tweet com novidades sobre o Bleach: Thousand-Year Blood War, informando que a série "estará disponível nos EUA através do Hulu (plataforma de streaming) e no Disney+ internacionalmente". Parecia algo positivo, mas não foi o caso.
Com a aproximação da estreia da nova temporada, fomos percebendo alguns sinais dessa aquisição pela Disney, como a retirada de Bleach dos catálogos de Netflix e Crunchyroll entre outras coisas. Só que o Thousand-Year Blood War estreou no Japão e por aqui ficamos a ver navios. O anime até foi lançado nos EUA através do Hulu, mas a América Latina inteira não viu um shinigamizinho sequer chegando na Disney+.
Até o momento da publicação desta matéria, o único posicionamento oficial da Disney sobre o caso Bleach é um tweet da conta oficial @DisneyPlusHelp respondendo "infelizmente informamos que BLEACH não será incluído na América Latina" a um usuário com dúvidas. Ou seja, por enquanto o jeito é esperar.
Urusei Yatsura, Made in Abyss e o problema do HIDIVE
Outro grande anime desta temporada é Urusei Yatsura, produção do renomado David Production (de Jojo’s Bizarre Adventure) inspirado no primeiro mangá criado por Rumiko Takahashi (de InuYasha). A série não é apenas uma comédia romântica, mas é quase a mãe de todas as comédias românticas apresentando não só a primeira “waifu” do mundo otaku, a alienígena Lum, como também um dos primeiros protagonistas de comportamento tóxico que vai apanhar em todo episódio, o jovem Ataru Moroboshi.
Havia um receio de saber como o David Production ia adaptar (e atualizar) uma série tão icônica dos anos 1970, mas os medos desapareceram após um primeiro episódio acima da média. As televisões de tubo e os telefones de discar do cenário são meros detalhes para uma história que está frenética e ágil como se fosse uma produção desenvolvida agora em 2022. Urusei Yatsura é um anime obrigatório, mas indisponível.
Os otakus do nosso país receberam há algumas semanas uma notícia pouco alegre: fora do Japão o anime de Urusei Yatsura foi licenciado para o HIDIVE, um serviço de streaming que não atua mais em mercado nacional. Recentemente a plataforma era acessível pelos brasileiros e até lançou um anime com dublagem brasileira, Lupin III - Parte 6, mas pouco tempo depois o HIDIVE encerrou as atividades por aqui e sumiu. Com isso, é impossível se conectar à plataforma pelos meios normais, tornando inviável para acompanhar seus animes.
O HIDIVE possui a licença para trabalhar com Urusei Yatsura em todos os países fora da Ásia, porém como o serviço não está disponível no Brasil o anime caiu em um “limbo”.
Isso é triste, pois o HIDIVE tem acrescentado ao seu catálogo muitos bons animes nos últimos tempos, e com isso todos eles ficam indisponíveis para nós brasileiros. Entre as franquias presentes no serviço estão a nova temporada de Made in Abyss, outro anime muito querido pelos otakus brasileiros, e o divertido Ya Boy Kongming!, anime sobre um general de guerra chinês transportado para o nosso mundo para participar de batalhas de DJ (!).
O passado era pior
Comentar que estamos sem lançamento oficial de um ou outro anime pode parecer dramático demais quando lembramos o quão difícil era assistir a uma série nova algumas décadas atrás. Os otakus dos anos 2000 que assistiam às produções licenciadas oficialmente precisavam torcer para que alguma série mais alternativa fosse lançada em DVD (e sempre de forma incompleta) ou então assinar um pacote caro de TV paga para acompanhar animes em canais como Animax ou Cartoon Network. Uma posição ainda assim mais confortável que os otakus dos anos 1990, reféns da boa vontade das emissoras abertas.
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Nesses períodos com menos possibilidades, a ilegalidade acabou se tornando uma forma de se consumir os mais recentes animes japoneses. Quem acompanhou Naruto coladinho com o Japão no começo de 2000 tem memórias vivas de caçar os episódios com legendas ou então adquirir uma mídia física com coletânea dos episódios. Já o pessoal dos anos 1990 estava em uma situação ainda pior: além das roupas anormalmente largas, para acompanhar animes fora da TV aberta era necessário apelar para locadoras japonesas com fitas gravadas da televisão japonesa (e sem legenda, claro), ou então apelar para os fansubs, grupos de fãs que conseguiam legendar as séries para vendê-las pela internet em fitas VHS. Acredite, muito otaku dos anos 1990 acompanhou Cowboy Bebop, Berserk e KareKano dessa forma quase pré-histórica.
Tudo começou a mudar (para melhor, felizmente) quando se popularizaram os serviços de streaming. Com o simulcast, uma das principais bandeiras da Crunchyroll, os brasileiros conseguiram acesso aos animes ainda mais rápido que a ilegalidade: uma hora após a exibição no Japão já é possível assistirmos aos episódios dos animes com legenda e tudo. O serviço ainda se aperfeiçoou, colocando a possibilidade de assistir os grandes títulos com dublagem pouco menos de um mês após a exibição original. Alguns outros formatos de lançamento de animes também foram experimentados pelos streamings, como o lançamento em bloco (como a Netflix faz com Shaman King e Jojo’s Bizarre Adventure: Stone Ocean) ou o lançamento mundial numa mesma data, inclusive com dublagem disponível (como Cyberpunk: Mercenários e Bastard).
Com tantas facilidades, e com tantas possibilidades, o fato de não termos algum anime que queremos muito ver sendo disponibilizado no Brasil deixa um gosto amargo na boca. E infelizmente não há muito o que fazer para o fã, além de reforçar virtualmente seu desejo de assistir àquela série.
Os fãs de Bleach ainda têm alguma chance porque o barulho causado pelos numerosos fãs reverbera bastante e já deve ter chegado aos ouvidos da Disney, mas aos fãs de Urusei Yatsura ou de Made in Abyss resta apenas torcer para que os japoneses percebam esse público em potencial e pensem em licenciar para streamings que trabalhem com esses territórios esquecidos pelo HIDIVE. No fim, fica a impressão de ser um caso de empresas japonesas desconhecendo o fato de que podem levar seus animes a ainda mais lugares e, consequentemente, ganhar ainda mais dinheiro.