Se por um lado Cavaleiros do Zodíaco é uma obra sobre crianças desamparadas, por outro a própria versão em 3D lançada pela Netflix também ficou ao relento quando o serviço de streaming não quis continuar com as aventuras de Seiya e os outros. Agora sob as asas da Crunchyroll, o anime Knights of the Zodiac - Os Cavaleiros do Zodíaco continua com a difícil tarefa de agradar um público mais novo ao mesmo tempo que tenta não desagradar os fãs do original. Como os dois objetivos parecem distantes, quais serão os erros dessa nova aventura de Seiya?
Da Manchete para a Netflix
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Quem dá o play em Knights of the Zodiac - Os Cavaleiros do Zodíaco para ver Seiya de Pégaso discutindo com um bueiro pode não fazer ideia do trajeto que levou a Toei Animation a produzir esse reboot em computação gráfica. Criada por Masami Kurumada, a série Saint Seiya foi lançada nas páginas da Shonen Jump no final de 1985 e logo ganhou um anime pelas mãos desse tradicional estúdio de animação. Vendo ali uma oportunidade de vender ainda mais bonequinhos com armaduras intercambiáveis, a Bandai deu um empurrão e ajudou a levar o anime para países ocidentais.
Após o sucesso na França (com o nome Les Chevaliers du Zodiaque) e em países de língua hispânica (Los Caballeros del Zodiaco), a rinha de órfãos promovida pelo milionário Mitsumasa Kido aportou no Brasil em setembro de 1994 com o título Os Cavaleiros do Zodíaco. Tudo o que conhecemos atualmente como mercado otaku no país começou ali. A animação era muito diferente de qualquer coisa exibida à época, e com isso todas as emissoras saíram atrás de outras animações semelhantes com personagens “de olhos grandes”. Imagine uma popularidade próxima à de Naruto atualmente, porém concentrada em dois anos: essa era a febre de Os Cavaleiros do Zodíaco no Brasil. Os defensores de Atena marcaram uma geração, e esse público talvez tenha se apegado demais ao anime dos anos 1980.
Assim como acontece com outras franquias de sucesso, houve esforço por parte da Toei para renovar o público de Os Cavaleiros do Zodíaco, até como forma de prolongar a franquia. Após uma reprise no começo dos anos 2000 e uma tentativa de conquistar os EUA (sem sucesso), o estúdio japonês tentou atrair pessoas mais novas com produções leves como Os Cavaleiros do Zodíaco: Ômega, série ambientada no futuro em que temos um novo grupo de cavaleiros de bronze cujos mentores eram os personagens clássicos. Infelizmente esse projeto não deu muito certo, assim como outras séries posteriores da franquia (como Saintia Shô, uma versão protagonizada por mulheres). Mas não pense que os fãs aceitaram apenas séries com os personagens conhecidos do anime original, pois se observarmos de forma crítica mesmo séries derivadas como Alma de Ouro (como o próprio nome indica, uma história sobre os cavaleiros de ouro) tiveram dificuldade de conquistar o público fã de Os Cavaleiros do Zodíaco.
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Sabendo que tinha uma franquia com bom aproveitamento de vendas nas mãos, a Toei percebeu que era necessário um novo anime contando a história do zero para renovar o público, e quem sabe atrair os americanos com um anime mais moderno. O anúncio dessa nova série, agora intitulada Knights of the Zodiac: Saint Seiya (uma mistura do nome americano com o japonês) aconteceu em agosto de 2017, quando a Netflix via nos animes uma forma de ampliar seu catálogo de produções exclusivas. Parte da estratégia para aproximar a trama dos gostos “ocidentais” envolveu a contratação do roteirista Eugene Son (dos desenhos Os Vingadores Unidos e Marvel Super Heros Adventures) para tocar o projeto, mas ninguém imaginava o tipo de mudança que estaria por vir.
Normalmente já existe uma revolta por parte do otaku quando a animação é em 3D, mas o primeiro trailer de Knights of the Zodiac: Os Cavaleiros do Zodíaco revelado com exclusividade na CCXP 2018 trouxe um outro detalhe para a indignação dos fãs: o personagem Shun de Andrômeda, um dos cinco cavaleiros principais, agora seria uma garota. Como esperado de um anime dos anos 1980, Os Cavaleiros do Zodíaco não tinha uma grande representatividade feminina em seu elenco, inclusive as poucas mulheres que lutavam precisavam usar máscaras. A tentativa de colocar mais diversidade no elenco foi até bem vinda, mas pegou mal terem escolhido o único personagem que não seguia o estereótipo de masculinidade esperado para passar pela mudança de gênero.
Na época, o roteirista Eugene Son se defendeu alegando que décadas atrás era normal uma série com um grupo de homens lutando contra o mal, mas que atualmente o mundo estava diferente e os rapazes e garotas "lutam lado a lado”. A declaração de Eugene foi uma unanimidade negativa, pois conseguiu irritar tanto os fãs que rejeitaram essa diversidade quanto fãs mais progressistas, que apontaram machismo na escolha do Shun. Com isso o roteirista apagou sua conta no Twitter para evitar a chuva de hate que se aproximava e ficamos sem notícias sobre o projeto.
Uma série diferente, mas também igual
Todo o discurso sobre o aumento da representatividade com a mudança de sexo do Shun (agora chamada Shaun na versão americana) foi para o ralo quando estreou o anime em 19 de agosto de 2019. A troca de gênero não alterou em nada a essência da história, no máximo trocando a voz clássica da personagem. Inclusive é necessário dar os parabéns para a equipe de dublagem brasileira pela voz da Shun de Andrômeda, pois a dubladora escolhida foi Úrsula Bezerra (a Rini de Sailor Moon), irmã do dublador do personagem na série clássica, Ulisses Bezerra.
A primeira leva de episódios, focada no arco dos cavaleiros de bronze enfrentando Ikki de Fênix, seguiu consideravelmente o roteiro original de Masami Kurumada. Houve a inclusão de cenas extras como Seiya andando de skate no primeiro episódio e uma hilária discussão com uma tampa de bueiro tecnológica, mas esses momentos agregaram humor em uma série tão sisuda. E esqueça toda a luta contra Dócrates que a Toei criou para anime original. Aqui, Seiya e os outros usam seus poderes para enfrentar helicópteros militares armados.
Se a primeira leva até colocou novos elementos na história clássica, os novos episódios lançados meses depois foram mais “conservadores”, adaptando em seis capítulos todo o arco dos cavaleiros de bronze enfrentando os cavaleiros de prata. Não que a série exigisse mais espaço para esse momento, afinal, no próprio mangá isso é bastante arrastado. Porém, quando o anime estava prestes a chegar em seu apogeu, a conhecida saga das doze casas, a Netflix se calou sobre a continuação. Boatos vindos do Japão apontavam que a Toei continuava produzindo o anime, mas nada do serviço de streaming confirmar uma data de exibição.
Por fim, essa nova temporada estreou com episódios semanais em dia 31 de julho de 2022 na Crunchyroll, agora com o nome de Saint Seiya: Os Cavaleiros do Zodíaco - Batalha do Santuário. Essa nova leva de episódios já começou com os cavaleiros pulando em um portal e se teleportando para a Grécia, tudo para enfrentarem os cavaleiros de ouro antes das 12 horas necessárias para a flecha perfurar o coração de Saori Kido.
A qualidade é muito boa, nada tem a ver com o visual “gráficos de PlayStation 3” que os fãs acusam. A Toei é um dos estúdios que melhor tem lidado com a animação em 3D, oferecendo boas produções nesse formato como o recente filme Dragon Ball Super: Super Hero e encerramentos com dancinhas em temporadas de Pretty Cure. Um destaque são as próprias armaduras, que agora parecem realmente serem feitas de metal. No começo da temporada Batalha do Santuário é possível perceber como as vestes dos guerreiros de bronze estão danificadas de batalhas anteriores, ao mesmo tempo que as armaduras de ouro parecem quase inatingíveis.
O original acima de tudo?
Knights of the Zodiac: Os Cavaleiros do Zodíaco oferece uma história razoavelmente fiel à original, introduz elementos que agregam à experiência e é uma experiência mais concisa da história original. Sendo assim, por que esse anime não é celebrado pelos fãs como uma “versão definitiva” da série original? Bem, por um motivo simples: ela não é a série original.
A série em 3D tem muito mais acertos do que erros. Além dos pontos já mencionados acima, a nova produção resolve o problema de ritmo da original. Enquanto animes dos anos 1980 (ainda mais de mangás em publicação) se perdiam em meio a fillers e cenas contemplativas para enrolar o público, a série dos Cavaleiros do Zodíaco surpreende ao ir direto ao ponto, um ritmo mais parecido com o próprio mangá de Masami Kurumada.
Essa não é a primeira vez que “apego ao original” dos fãs rejeita novidades da franquia. Tirando o anime Lost Canvas, nenhuma outra série teve muita adesão dos admiradores dos guerreiros de Atena. A impressão que fica é de que os fãs não aceitam qualquer produção de Os Cavaleiros do Zodíaco que não seja a original. Um caso bem próximo ao atual aconteceu quando a Toei lançou em 2014 o filme Os Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário. Com uma animação 3D impressionante, o longa reconta do início à batalha das doze casas de uma forma resumida e cheia de personalidade, mas acabou rejeitada pelos fãs por liberdades artísticas. Até hoje há críticas à “batalha de Megazord” e à cena musical da “Casa de Câncer”, como se fossem elementos irreais demais para um anime protagonizado por adolescentes que soltam poderzinhos da mão.
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Talvez Saint Seiya: Os Cavaleiros do Zodíaco - Batalha do Santuário tenha mais chances de chamar a atenção dos otakus e fãs da série agora na Crunchyroll, desde que esse público coloque na cabeça que é uma adaptação da obra original recontando um dos arcos mais queridos. De qualquer forma, vale dar uma olhada nos episódios que estão sendo lançados semanalmente no serviço de streaming aos domingos (a dublagem chega em breve), nem que seja para se divertir com a porrada que Seiya e os outros vão tomar dos cavaleiros de ouro. Afinal, se tem uma coisa que uniu o Brasil nas últimas décadas é o prazer de ver o protagonista de Os Cavaleiros do Zodíaco apanhando bastante.