O otaku tem dois grandes medos em sua vida: seu anime favorito não ter uma conclusão ou então essa série ganhar uma versão em live action. Embora tenhamos ótimas adaptações de carne e osso como Speed Racer e Bleach, o fã de cultura pop japonesa ainda é assolado pelo fantasma de péssimas produções como Death Note e Dragon Ball Evolution. Esta última, inclusive, é considerada por muitos como o exemplo do que não deve ser seguido pela indústria.
Com a recente divulgação na CCXP 2022 do teaser de Saint Seiya: Knights of the Zodiac, a versão live action do anime Os Cavaleiros do Zodíaco, a dúvida voltou a pairar sobre os fãs: estaria essa produção sendo feita com carinho e competência de um Rurouni Kenshin ou receberíamos algo próximo de um Dragon Balll Evolution, com um Goku com personalidade de Peter Parker e um Piccolo parecendo um vilão do Batman?
Um trauma chamado Dragon Ball Evolution
Antes de nos aventurarmos nas especulações sobre o filme de Os Cavaleiros do Zodíaco, é importante situar o leitor no desastre que foi a adaptação cinematográfica de Dragon Ball feita pela FOX. O sonho de levar Dragon Ball para as telonas é antigo, até porque a série de Akira Toriyama causava uma forte comoção popular por onde passasse. Infelizmente para os donos dos direitos autorais, as primeiras produções em live action foram filmes produzidos de forma... alternativa.
Um estúdio coreano deu o pontapé nos cinemas em 1990 com Dragon Ball: Ssawora Son Goku, Igyeora Son Goku (algo como "Dragon Ball: Lute, Son Goku. Vença, Son Goku"). Nesse longa, uma adaptação do primeiro arco do mangá, temos um rapaz com um cabelo cheio de gel em uma jornada atrás das esferas mágicas. Aos olhos de hoje, esse filme parece produção de zoeira, pois foram usados bichos de pelúcia, stop-motion e até colocaram um cigarro na boca do Pual. Já no ano seguinte foi lançado o filme chinês Xin Qi Long Zhu (mais conhecido por aqui como Dragon Ball: The Magic Begins), uma adaptação bastante livre do material original, mas ainda assim espirituosa e querida pelos fãs mais hardcore.
Mesmo que de forma não oficial, esses filmes apontaram o principal problema para se adaptar Dragon Ball: não havia tecnologia necessária para transpor a pirotecnia de Goku dos animes para as telonas. O ator Jackie Chan, inspiração para Akira Toriyama compor alguns elementos de Dragon Ball, já declarou publicamente em um databook da franquia o seu sonho de adaptar a série para o cinema, mas constatou que não havia orçamento e efeitos especiais o bastante para o feito.
Mas o mundo gira e anos depois Dragon Ball se tornou um fenômeno do outro lado do mundo, mais especificamente nos EUA. A 20th Century Fox viu naqueles homens musculosos soltando bolas de energia um potencial para criar um filme e adquiriu os direitos da franquia diretamente com a Shueisha já em 2002, quando Dragon Ball era um estouro mundial.
Como é comum em várias produções americanas, o processo passou por uma dança das cadeiras até encontrar alguém que pudesse trabalhar no longa. Nomes como Robert Rodriguez (Alita: Anjo de Combate) e Zack Snyder (responsável pela versão Snydercut do filme Liga da Justiça) até foram cogitados, mas o filme caiu no colo do diretor James Wong (de Premonição) e do produtor Stephen Chow (Shaolin Soccer e Kung-Fusão). Com tudo acertado, a equipe foi atrás dos melhores atores que o baixo orçamento de 30 milhões de dólares poderia bancar. Justin Chatwin, um novato projetado pelo filme Guerra dos Mundos, foi selecionado para interpretar a versão americanizada de Goku e o resto é história.
No decorrer da produção do filme houve uma preocupação dos fãs sobre a qualidade, afinal tudo aquilo parecia muito diferente do esperado de um Dragon Ball. Na época, sites e jornais foram repercutindo declarações de Akira Toriyama tranquilizando o público, e o autor dizia que o filme americano era fiel ao seu legado. Após o desastre nas bilheterias e a péssima repercussão entre os otakus, o criador de Dragon Ball passou a criticar o filme, alegando não ter sido ouvido durante a produção e que o longa era “desinteressante”, mais um caso de “filho feio não tem mãe”.
Knights of the Zodiac
Embora Os Cavaleiros do Zodíaco tenha seu público no Japão e faça muito sucesso na França e América Latina, o sonho da Toei sempre foi introduzir a franquia nos EUA. Durante os anos 2000, quando Dragon Ball explodia de popularidade, houve uma tentativa de levar Os Cavaleiros do Zodíaco com o nome Knights of the Zodiac, mas a produção fracassou pela adaptação estranha, pelos cortes e pelo conteúdo bastante datado. A mais recente tentativa de trabalhar com a série foi com um reboot produzido em computação gráfica e lançado pela Netflix, mas após uma temporada o projeto perdeu sua casa e recentemente foi acolhido pela Crunchyroll.
Em meados de 2017, alguns anos após o lançamento do filme A Lenda do Santuário (uma comemoração dos 25 anos do mangá original), a Toei decidiu que era hora de trazer ao mundo uma versão com atores em carne e osso da história criada por Masami Kurumada. Em parceria com uma empresa de Hong Kong chamada A Really Good Film Company (que a tradução seria algo como "Uma Companhia de Filmes muito Boa", um título inesperado para uma companhia de filmes), os envolvidos deram os primeiros passos para um filme de Cavaleiros.
Divulgação
Foram alguns anos de notícias vagas e contratações até finalmente encontrarem nomes grandes para a equipe de produção. No segundo semestre de 2021 descobrimos o elenco convidado para o longa, como o ator Mackenyu Arata (Enishi Yukushiro do último filme de Rurouni Kenshin) no papel de Seiya de Pégaso e Madison Iseman (a Bethany da nova série de Jumanji) como Sienna, a reencarnação da deusa Atena. Anteriormente previsto para 2019, Saint Seiya: Knights of the Zodiac acabou ficando para 2023.
O teaser divulgado durante o painel da Crunchyroll na CCXP 2022 (exibido como um “mimo” da Toei Animation, afinal o filme não será lançado na plataforma de streaming) parece seguir uma cartilha de teasers pouco inspirados. Há muitas cenas de paisagens feitas em computação gráfica, muitos closes dramáticos e até algumas piadinhas que parecem ter saído de um filme do Universo Cinematográfico da Marvel, e tudo costurado com uma narração épica sobre a luta entre homens e deuses.
Vimos pouco do filme, até por ser um teaser. Embora tenhamos vislumbrado um Seiya com uma roupa bem próxima à do mangá, uma rápida participação da Marin e cenários gregos muito condizentes com a história original, ainda não parece ser o bastante para tirar alguma conclusão. No entanto, já é possível fazer algumas observações, principalmente quando pensamos no nosso medo de se tornar um novo Dragon Ball Evolution.
Conclusão inconclusiva
Vendo o lado cheio do copo, o fato de termos um envolvimento direto da Toei Animation em Saint Seiya: Knights of the Zodiac transmite confiança, uma espécie de garantia que a pessoa responsável por cuidar da franquia está ali pessoalmente de olho no que pode aparecer nesse filme. Também pode ser visto como algo positivo a escolha de um ator asiático para o papel principal, afastando o medo de whitewashing, como quando Scarlett Johansson deu vida à asiática Motoko Kusanagi de A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell. Também é um respiro saber que Mackenyu está de acordo com o perfil de Seiya, algo que não vimos no protagonista de Dragon Ball Evolution.
Temos aqui no Omelete uma matéria sobre adaptações em live action de filmes baseados em animes e mangás, e percebe-se que as produções asiáticas têm mais habilidade de entender e adaptar a essência das obras, porém faltam às produtoras dinheiro para cenas de ação e efeitos especiais mais elaborados. Por mais fiel que sejam as adaptações de alguns filmes, as perucas mal-feitas de Fullmetal Alchemist ou o tamanho das crianças de The Promised Neverland podem tirar o espectador do clima do filme.
Por outro lado, produções feitas em estúdios ocidentais gozam de mais recursos financeiros e conhecimento de técnicas de filmagem, mas esbarram nas discrepâncias com os originais. Não adianta a qualidade estética do Death Note da Netflix se o filme foi incapaz de criar uma conexão direta com a essência do universo criado por Tsugumi Ohba e Takeshi Obata. E Dragon Ball Evolution já apresentava erros desde a concepção, quando optou por deixar de lado diferenciais da história original para criar um enésimo filme de adolescente descobrindo ser uma pessoa especial.
E como se essa discussão não fosse o bastante, Saint Seiya: Knights of the Zodiac nos deixa em dúvida quanto ao roteiro. O filme planeja recontar a história original, aquela coisa batida de Seiya ganhando a armadura, Guerra Galáctica, doze casas etc, mas vamos lembrar que a franquia já recebeu outros dois reboots nos últimos dez anos. O que de novo poderemos encontrar aqui, além de ver os mesmos elementos que já conhecemos de outras produções?
Resta aos fãs esperarem o lançamento desse filme em algum momento de 2023. Que o Cosmo esteja com a equipe de produção, porque vai ser necessário um esforço grande para acabar com o pessimismo dos fãs que já o escolheram como o novo Dragon Ball Evolution.