Em meio à expectativa da estreia do filme em live action de Os Cavaleiros do Zodíaco, uma coisa já podemos afirmar: temos mais uma adaptação que ignora uma das principais facetas da obra de Masami Kurumada, o drama. Quando lembramos de Saint Seiya logo nos vêm à cabeça cenas de orelhas sendo cortadas, cabeças voando e um cabeludo perdendo a visão mais vezes do que humanamente possível, mas o que fez com que o anime fizesse um sucesso estrondoso no Brasil nos anos 1990 não foi sua animação bonita, trilha sonora inspirada e nem os protagonistas profundos, e sim porque aquilo era um baita novelão mexicano e a gente adora isso naturalmente.
Um pezinho no folhetinesco
Embora tenha passado por momentos de popularidade em décadas anteriores, os animes explodiram mesmo no Brasil com a estreia de Os Cavaleiros do Zodíaco em 1994 na Rede Manchete. Com o sucesso de Seiya e os outros, as emissoras foram atrás de animações semelhantes vindas do Japão e o brasileiro foi apresentado a heróis como Goku, Yusuke Urameshi, Shurato e Sailor Moon. No final dos anos 1990 a febre dos animes voltou a dar uma esfriada, mas se reaqueceu no começo dos anos 2000 com a chegada de Pokémon e Dragon Ball Z. Desde então, o mercado segue muito aquecido e os animes fazem parte da cultura pop mundial.
Alguns motivos podem ser usados para explicar o sucesso dos animes no ocidente a partir dos anos 1990. Mesmo com clássicos como Batman - A Série Animada, a animação televisiva norte-americana passava por uma fase menos inspirada quando se tratava de produções para um público mais jovem. Os animes chegaram com cenas de luta bem coreografadas e personagens menos bidimensionais, e esses elementos acabaram sendo incorporados aos poucos nas próprias produções americanas (é inegável o quanto os animes afetaram a série Avatar, por exemplo). Porém, o sucesso dos animes na América Latina parece ter tido outro empurrãozinho.
Reprodução
É até estranho falar que Os Cavaleiros do Zodíaco é um shonen de lutinha como Dragon Ball porque na história de Akira Toriyama as lutas são bem definidas, as técnicas fazem sentido naquele universo e a luta resolve mais que a conversa. Já na criação de Masami Kurumada as lutas são as mais desinteressantes possíveis, normalmente envolvendo um personagem erguendo o punho para os ares e gritando o nome de um golpe. Se não deu certo, levanta a mão e grita novamente até acertar.
Claro que quando chegou por aqui o anime de Os Cavaleiros do Zodíaco chamou a atenção por sua violência nas lutas -- a orelha do pobre Cassius virou assunto entre as crianças que acabaram zapeando pela Manchete naquele ano --, mas a obra de Masami Kurumada tem uma estrutura folhetinesca que não estávamos acostumados em séries como As Tartarugas Ninja ou He-Man. Em vez de episódios isolados com aventuras que acabavam ali mesmo, Os Cavaleiros do Zodíaco apresentava uma trama longa e contínua, com sucessão de contratempos, ganchos ao final dos episódios e muito bate-papo entre os personagens. E isso tudo remete a um gênero que está no nosso sangue latino, o do folhetim melodramático.
O drama em Cavaleiros do Zodíaco
Em um estudo publicado na Revista Faap (2005), o professor de História do Rádio e Televisão Flávio Luiz Porto e Silva detalhou a estrutura de um melodrama de forma bem simples, sendo composta por personagens representando valores opostos e uma alternância de momentos de desolação e desespero com outros de serenidade e euforia. Ao final, a virtude é recompensada e o grande mal acaba sendo punido. Se essas características já parecem se encaixar como uma luva em uma alta porcentagem de mangás e animes produzidos no Japão, tudo aqui é se aplica ao roteiro de Os Cavaleiros do Zodíaco.
Reprodução
A história de Seiya repleta de acontecimentos dignos de uma novela mexicana, daquelas bem dramáticas. Logo na infância ele é separado de sua irmã Seika, é enviado para treinar artes marciais na Grécia tendo como tutora uma sósia de sua parente desaparecida, retorna ao Japão como marionete de um milionário e descobre que precisa cumprir uma tarefa de proteger a garota (supostamente uma deusa) que o humilhava durante sua infância no orfanato. Só nesse parágrafo referente aos acontecimentos dos primeiros episódios a gente já consegue imaginar Seiya sendo interpretado pela Thalia de tanto que ele sofre nessa história.
Os núcleos principais de Os Cavaleiros do Zodíaco são mais baseados em premissas dramáticas que de combate, afinal o autor está ciente que ele não é bom em desenhar cenas de luta. Masami Kurumada vai desenrolando os acontecimentos tal qual um novelo de lã, sempre tentando buscar o momento mais dramático possível: é Aioria descobrindo a possível traição de seu irmão, Ikki se sacrificando para proteger a pureza de seu irmão Shun, Hyoga precisando lutar contra seu mestre e por aí vai. Ele não quer surpreender o leitor pelo combate, e sim pelas reviravoltas e pela carga emocional.
Isso porque nem chegamos no tópico das vilanias. Por mais que disfarcem suas ambições com um “quero dominar o mundo hahahaha” (leia isso imaginando a voz do dublador Gilberto Baroli), os antagonistas de Os Cavaleiros do Zodíaco são movidos pelos sentimentos mais rasteiros de vilões de novela: inveja, cobiça, recalque. Temos até a presença do clichê dos irmãos gêmeos de personalidades diferentes, fazendo com que Saga de Gêmeos e Kanon sejam Paulina e Paola do Santuário (claro, se a Paulina também tivesse um distúrbio de personalidade).
Reprodução
O mais incrível é que a direção do anime original, assinada primeiramente por Kozo Morishita, conseguiu captar perfeitamente essa intenção do autor. Foi feito ali um trabalho melhor na questão das lutas, afinal no anime dá para “consertar” os combates fracos do mangá, mas o trabalho do diretor soube dar um tempo dramático para os acontecimentos se desenvolverem. Temos muita troca de olhares, instrumental exagerado, muitas frases de efeito, repetição de informações, tudo isso montado de uma forma a se atingir o ápice do drama.
Com tudo isso, não é uma surpresa chutar que parte do apelo de Os Cavaleiros do Zodíaco em países da América Latina é pela semelhança temática e estrutural com os folhetins televisivos. São culturas que trazem o apreço por esse tipo de ficção no sangue, então são capazes de atrair quase de forma inconsciente o público através de uma característica que ele mesmo pode não notar. A graça de ver Os Cavaleiros do Zodíaco, assim como acompanhar uma novela, é ver como os personagens vão resolver os inúmeros contratempos que aparecem com muita velocidade no desenrolar de cada episódio para, só então todo mundo sentir a catarse de um final feliz.
A essência de Os Cavaleiros do Zodíaco
Talvez a falta desse entendimento sobre Os Cavaleiros do Zodíaco ser uma história mais dramática seja o principal problema em todos os planos de reviver a série atualmente. Tivemos muitas tentativas de trazer os guerreiros de Atena para um público mais recente, mas todas falharam por não entenderem o ponto da história original.
Reprodução
Claro que não podemos excluir uma natural má-vontade por parte dos fãs que aceitam apenas a produção original dos anos 1980, mas filmes como A Lenda do Santuário ou o reboot em CGI sofrem por focar mais nos combates que no desenvolvimento dramático de seus personagens. E por mais que sejam adaptações livres até bem fiéis à original, você não enxerga aquele Seiya cheio de questões emocionais naquele garoto que discute com um bueiro. Parecem dois personagens distintos.
Talvez a adaptação perfeita de Os Cavaleiros do Zodíaco, e que nunca será feita, seja uma novela daquelas bem dramáticas. Um monte de ator de 20 anos interpretando adolescentes de 13, vilões com risadas malignas e planos sórdidos, uma sucessão de desgraças e ainda um polígono amoroso envolvendo Seiya, Saori e várias outras personagens femininas à sua escolha. Uma adaptação com personagens sofrendo mais que a Marimar pegando uma pulseira na lama talvez seja o que a franquia precisa e ninguém tem a coragem de fazer.
Recomendações para se aprofundar no assunto
Caso queira se aprofundar nas qualidades da série original, há dois podcasts muito bons para se recomendar. O Kitsune da Semana de número 100 é uma análise muito detalhada do mangá feito pelo crítico Leonardo Kitsune, e lá ele detalha com ainda mais paixão todo esse lado dramático da história de Masami Kurumada. É um programa longo, mas vale a pena cada minuto.
E para levar com um pouco mais de graça os “defeitos” do anime original, o programa de número 115 do Caioverso trouxe uma conversa entre Caio Catarino e Sahgo a respeito dos fillers da primeira fase de Os Cavaleiros do Zodíaco. O papo é muito divertido e te fará relembrar de alguns momentos que sua memória com certeza tentou apagar.
E, claro, quem ficou curioso em reassistir ao anime clássico de Os Cavaleiros do Zodíaco, pode fazer isso lá na Crunchyroll. Já se quiser conferir o reboot em CGI, ele tem sua primeira temporada disponibilizada pela Netflix e a segunda pela Crunchyroll. O filme Os Cavaleiros do Zodíaco - Saint Seiya: O Começo estreia nos cinemas de todo o Brasil no dia 27 de abril.