Um dos maiores perigos da sociedade moderna são as fake news, notícias compartilhadas em redes sociais que não correspondem à realidade. Embora muito se discuta sobre o uso político dessas informações falsas, vários outros campos também têm suas próprias fake news... como o meio otaku brasileiro. Na lista de hoje relembramos algumas notícias falsas que há muito tempo são difundidas pela comunidade, além de explicar por que elas são equivocadas. Vamos à lista!
“Hiro Mashima (Fairy Tail) foi assistente de Eiichiro Oda (One Piece)”
One Piece/Reprodução Fairy Tail/Reprodução
Em meados dos anos 2010, comparar Fairy Tail e One Piece havia virado moda entre os otakus. Além de questões de história, como o fato de serem duas histórias focadas em laços de amizade e grupos resolvendo missões, o principal ponto de conexão entre os dois mangás era o traço dos personagens. Alguns fãs pegavam quadros específicos de Fairy Tail, colocavam ao lado de algum desenho de One Piece e pronto: as fofocas de supostos plágios fervilhavam pelas redes sociais (no caso, o Orkut).
No entanto, uma informação falsa sobre esses dois autores começou a circular nessa mesma época e ainda hoje tem gente que acredita. Por conta da semelhança de traço entre Eiichiro Oda e Hiro Mashima, rolou a história de que o autor de Fairy Tail teria sido assistente do criador de One Piece. No Japão, é normal um mangaká contar com autores novatos como assistentes, até para eles pegarem prática na função, então as pessoas acreditaram que seria a razão do estilo dos dois ser tão parecido. E, como você pode imaginar, isso é uma mentira.
Pra começar, Hiro Mashima trabalha para a editora Kodansha e Eiichiro Oda é autor da Shueisha, duas editoras rivais, e não teria como o primeiro ter trabalhado com o segundo, até porque eles nunca trocaram de empresa na vida. Mas o que explica o traço dos dois serem parecidos? Simples: ambos bebem da mesma inspiração, o estilo limpo usado por Akira Toriyama em seu sucesso Dragon Ball. Se você fizer as contas, verá que tanto Mashima quanto Oda eram jovens quando Goku estava em seu auge, e isso explica muita coisa.
“Mangá shoujo são histórias de romance”
Ao Haru Ride/Reprodução
Os mangás mais populares no mundo são os da demografia shonen (destinados a garotos adolescentes), ou seja, Dragon Ball, One Piece, Naruto, My Hero Academia, Demon Slayer, Jujutsu Kaisen e por aí vai. Por outro lado, existe uma outra demografia popular no Japão, o shoujo (para garotas adolescentes), cujo maior expoente são séries como Kare Kano, Boys Over Flower, Lovely Complex, Ore Monogatari, Ao Haru Ride, Fruits Basket entre outras. Por causa da repetição de temas, e de uma generalização equivocada, o público foi condicionado a achar que histórias shoujo são focadas em… romance.
Embora muitas histórias sejam sim focadas em relações amorosas, isso não tem nada a ver com a demografia shoujo. Na verdade, a demografia se refere apenas ao público alvo da história, e não seu gênero (que pode ser ação, romance, terror etc). Sendo assim, existe série shoujo focada em lutas e aventuras (Akatsuki no Yona, Sailor Moon, Card Captor Sakura), tramas envolvendo crimes (Banana Fish) e inúmeras outras variações.
Da mesma forma, mangá shonen não significa ser sempre focado em luta. Há as tramas mais psicológicas (Death Note), thriller (The Promised Neverland), séries esportivas (Slam Dunk), comédias escrachadas (Dr Slump) e até mesmo histórias de romance (Nisekoi, Your Lie in April). Se ainda tiver dúvidas, recomendo esta matéria aqui no Omelete sobre o assunto.
“Yoshihiro Togashi deixou Hunter x Hunter em hiato por causa de Dragon Quest”
Hunter x Hunter/Reprodução Dragon Quest XI/Reprodução
Toda vez que a desenvolvedora Square-Enix anuncia algum jogo da franquia Dragon Quest, uma mesma “piada” aparece aos montes: “agora que Hunter x Hunter não volta mesmo”. Para boa parte da internet, o autor Yoshihiro Togashi é um fã inveterado da série de RPG japonesa e, por causa desse vício, ele se vê obrigado a parar de fazer Hunter x Hunter para se aventurar pelos mundos medievais do game. Isso é uma mentira, logicamente.
Embora Yoshihiro Togashi seja muito fã de jogos de videogame, inclusive RPGs (só ver como ele adora criar arcos com regras específicas), Hunter x Hunter está em hiato por motivos de saúde: o mangaká sofre de uma severa dor nas costas, grande o bastante para impedir que ele desenhe ou mesmo fique em uma posição confortável. Com isso, ele tem um acordo especial com a editora Shueisha que permite que ele lance “blocos” de capítulos para Hunter x Hunter quando ele está bem de saúde.
Lembre-se que o mercado de mangás no Japão é bastante cruel com os autores, e não é incomum que eles passem por uma rotina puxada para entregar as 20 páginas semanais para a revista. Um caso recente, e bastante triste, foi o falecimento do autor de Berserk, Kentaro Miura.
“Yaoi são mangás para gays”
Given/Divulgação
Essa frase contém uma sucessão de equívocos que, infelizmente, ainda são bastante repetidos hoje em dia. Para começar, a palavra “yaoi” caiu em desuso e não é mais utilizada para se referir aos quadrinhos japoneses protagonizados por rapazes homossexuais.
Antigamente havia uma divisão na comunidade de que "yaoi" se referia a produções amadoras, "shounen-ai" eram para histórias mais antigas e "lemon" seriam as produções mais pornográficas, mas hoje em dia se tem ciência de que tudo isso é Boy's Love (ou BL), como mostra esse infográfico feito por um site especializado.
A outra informação errada é a de que essas histórias são feitas para o público gay, pois na verdade uma boa parte da produção de BLs tem como destino as leitoras do sexo feminino. Mesmo assim, há uma categoria de mangás feitos com o público homossexual em mente, os bara. Aqui no Brasil, uma quantidade bem considerável de títulos Boy’s Love, como a série Given, é publicada pela editora NewPOP.
“Os personagens têm olhos grandes para mostrar sentimentos”
Saber Marionette J to X/Reprodução
Essa lenda urbana era bem difundida entre fãs de animes e revistas do passado. Animes e desenhos ocidentais têm características de produção bem próprias, mas o ponto que sempre chamou a atenção das pessoas são os olhos grandes e expressivos dos personagens. Na tentativa de justificar isso, surgiram algumas explicações preconceituosas e também a história de que “os olhos servem para mostrar o reflexo da alma”. Na verdade, a iniciativa por trás dos olhos avantajados teve uma outra origem.
Quando Osamu Tezuka começou a produzir seus mangás, uma de suas inspirações eram as animações norte-americanas. Desenhos do Mickey e da Beety Boop influenciaram o mangaká e ele incorporou em seu traço os olhos grandes. Com o tempo a característica se tornou uma marca dos animes e mangás e, por mais que até auxilie na hora de mostrar os sentimentos dos personagens, a origem dos olhos grandes é mesmo o Mickey Mouse.
“Dragon Ball Z foi interrompido pelo atentado de 11 de setembro”
Dragon Ball Z/Reprodução
É só chegar o dia 11 de setembro para as redes sociais serem inundadas por relatos de pessoas contando o que estavam fazendo quando ocorreu o atentado terrorista nos EUA. Por mais que muitos insistam na história de que estavam na frente da TV Globinho assistindo ao episódio no qual Goku se transformava em Super Saiyajin 3 pela primeira vez quando apareceu o Plantão da Globo, isso nunca aconteceu.
Temos uma matéria aqui no Omelete explicando todos os detalhes que mostram como esta memória das pessoas é falsa, mas resumindo a história: Dragon Ball Z não chegou a ser exibido naquele dia, o episódio não seria o da transformação em Super Saiyajin 3 e o programa infantil da época, o Bambuluá (a TV Globinho era apenas um quadro dentro deste infantil) estava transmitindo um episódio clássico de Mickey e Donald, o desenho animado da Disney.
A essas “memórias falsas” é dado o nome de “Efeito Mandela”, em homenagem às memórias incorretas a respeito da morte de Nelson Mandela: embora muitos acreditavam na morte do ex-presidente da África do Sul durante os anos 1990, ele só veio a falecer em 2013.
“O ocidente não influencia o mercado de animes no Japão”
The Rising of Shield Hero/Reprodução
Essa frase não seria uma mentira em meados dos anos 1980 ou 1990, quando o mercado de animes funcionava bem no Japão e em seletos territórios, mas atualmente é um pensamento bem defasado. O anime atingiu um status muito grande no ocidente, e o sucesso das produções deste lado do globo estão compensando uma possível diminuição de receita no Japão.
Com a chegada de serviços de streaming como Netflix e Crunchyroll, que facilitaram o nosso acesso a produções japonesas, aumentou exponencialmente o financiamento dessas produções. Temos até o caso de séries produzidas no Japão já tendo em vista o apelo que terão com o público ocidental.
Alguns elementos dos animes mostram o quanto o mercado ocidental se tornou importante para manter a indústria saudável, como a preocupação em dar um “nome internacional” para as produções e as adaptações de temas que podem ser “delicados” em outras culturas. A versão animada de Blade of the Immortal, por exemplo, mudou o símbolo manji nas costas do protagonista para evitar qualquer similaridade com a suástica nazista. Entretanto, isso nem sempre ocorre, vide o recente caso com o uso do símbolo em Tokyo Revengers (explicamos melhor nesta matéria).
“Animes têm histórias mais profundas que desenhos ocidentais”
Demon Slayer/Akira/Reprodução
Quando os animes se popularizaram em meados dos anos 1990, após o sucesso de Os Cavaleiros do Zodíaco, houve quem tentasse explicar os motivos para a animação japonesa ser tão atrativa. Era uma época com desenhos americanos mais “quadrados”, e as possibilidades de roteiro de um anime acabaram levando o público a achar que estes supostamente tinham histórias mais profundas.
Se você pegar um anime dos anos 1990 como Ghost in the Shell ou olhar para o sucesso de Akira na década anterior, faz sentido acreditar nessa frase, mas não se engane: ela acaba olhando somente produções específicas focadas no público adulto. Se olhar a produção como um todo, verá que há espaço para todo tipo de história. Ao mesmo tempo que um Sonny Boy está propondo uma história mais “cabeça”, a indústria do anime também é capaz de criar uma grande farofa como Demon Slayer capaz de atrair as pessoas com lutas bem desenhadas e efeitos especiais. No fim, é tudo entretenimento.
Para ser justo, o mesmo acontece no mercado de animação ocidental: de A Lenda de Korra ao filme dos Minions, e passando por Rick & Morty, há espaço para todos os tipos de animação e abordagem.