Uma das coisas mais encantadoras nos animes é quando algum movimento muito bem feito ou algum golpe muito bem desenhado nos tira o fôlego. Quando conheci os animes, antes mesmo de descobrir o termo “anime”, lembro de ficar bobo na frente da televisão com algumas cenas mais detalhadas de Os Cavaleiros do Zodíaco ou Sailor Moon, trechos com uma animação “superior” ou com personagens se movimentando de uma forma bastante impressionante. Décadas se passaram e descobri que esses momentos nos anime tinham um nome específico: sakuga.
Com o advento da internet e das redes sociais, a discussão sobre sakugas nos animes ganhou novos horizontes. Agora temos não só apreciação de boas lutinhas daquele seu shonen favorito, mas também catalogação de profissionais que trabalharam em cada cena, discussões sobre a produção de animes no Japão e também questionamentos sobre a falta de preocupação com a saúde dos animadores por parte dos estúdios. Quem diria que um simples nome poderia abrir tantas camadas do processo de animação, não é?
O que é sakuga?
Há até bem pouco tempo não era comum o uso da palavra sakuga entre os fãs de anime daqui, mas isso não quer dizer que não se discutia animação. Os otakus sempre se engajaram em exaltar cenas “bonitas” de anime, normalmente eternizadas em AMVs (anime music video) tal qual a clássica Rock Lee versus Gaara de Naruto ao som de Linkin Park. Também havia espaço na comunidade para criticar animações que pareciam ter sido produzidas com o orçamento de um refrigerante e de uma coxinha, sempre com argumentos pouco embasados. O começo de Dragon Ball Super, por exemplo, foi duramente criticado pelos fãs sobre a falta de fluidez nas lutas, a ponto de pegarem imagens de transição da luta entre Goku e Bills para justificar a tese de que o anime não era belo como o dos anos 1990.
Para entender um pouco sobre essa parte mais técnica dos animes, conversei com Caio Nomichi, criador da Sakuga Brasil, que elucidou muitas dúvidas que tinha sobre sakugas. A discussão sobre o termo por aqui é bastante recente, e quem tem ajudado a popularizá-lo no país são páginas como a Sakuga Brasil. Através de posts nas redes sociais e em outras plataformas, a equipe do site detalha curiosidades sobre processos de animação, credita responsáveis por cenas de impacto e apresenta um olhar mais técnico à apreciação de animes.
Após tirar minha dúvida sobre como o nome era pronunciado (caso também tenha essa curiosidade, durante toda conversa pronunciamos /sakugá/), pulamos para tópicos mais interessantes que essa questão fonética. Sobre a origem da palavra sakuga, Caio explicou que a palavra em japonês significa "frame" ou "quadro", mas que no ocidente acabou ganhando um outro significado, o de demarcar cenas de anime consideradas mais trabalhadas, complexas e ambiciosas.
Como é de conhecimento público, quando a animação japonesa foi popularizada por Osamu Tezuka na época da televisão em preto e branco, os animes eram mais limitados, até por barreiras técnicas e orçamentárias. Com o passar do tempo, explica Caio, abriu-se espaço para brincar um pouco, e um dos responsáveis por introduzir esses trechos mais ambiciosos foi o animador japonês Yoshinori Kanada. Considerado o “pai da sakuga”, em 1974 ele aproveitou o trabalho no anime Getter Robo para aplicar mais fluidez em movimentos importantes.
Yoshinori Kanada/Reprodução
Embora a discussão a respeito de sakugas seja até bem recente no Brasil, lá fora se conversa sobre esses detalhes de animação há quase duas décadas. Unidos pelo conhecimento do inglês, animadores do mundo todo se reúnem em grupos, fóruns e bancos de dados como o Sakuga Booru para discutir animação, debater cenas ou mesmo exaltar uma lutinha muito bem produzida em animes famosos.
Mob Psycho 100, o queridinho das sakugas
Atualmente com sua terceira temporada em exibição pela Crunchyroll, Mob Psycho 100 é um dos expoentes das sakugas nos animes. Se a obra original desenhada pelo One (o criador de One-Punch Man) tem traços simples, como se o autor produzisse sua história sem muito refinamento, a versão animada pegou os elementos mais marcantes dos quadrinhos e os transformou em um espetáculo visual.
Nem é preciso assistir a um episódio para constatar isso; já nas aberturas de Mob Psycho 100 testemunhamos clipes psicodélicos nos quais figuras surreais se misturam a personagens muito bem animados, alternando danças com cenas de lutas empolgantes. E se for além da abertura, perceberá que o estúdio Bones caprichou demais aqui: em um dos primeiros episódios temos uma briga entre membros de escolas rivais digna de um Goku vs Freeza com Namekusei explodindo.
Isso já seria o bastante para colocar este entre os animes com melhores sakugas, mas a produção do anime conseguiu um outro feito quase único: tornou Mob Psycho 100 um anime de produção saudável, um dos raros casos nos quais os animadores têm tempo e recurso necessários para produzir um anime com tranquilidade e focado em entregar o melhor resultado possível. O nível de organização da produção é tão grande que a terceira temporada foi finalizada meses antes da estreia, o que permitiu um outro feito logístico: os episódios dublados em português estão sendo lançados pela Crunchyroll simultaneamente à estreia do original.
Quanto mais sakuga, melhor?
Quem acompanha a indústria há mais tempo deve ter percebido que o público foi se revelando muito fã de animes com muitas sakugas. Um dos casos mais lembrados é o de Demon Slayer, que se tornou um dos maiores fenômenos da animação japonesa mesmo vindo de um material original que não chamou tanta atenção nos quadrinhos. "Era um mangá que não vendia bem, que seria cancelado, era uma história super simples, só que o anime fez algo que editorialmente não havia acontecido antes. O anime é feito para promover o material original, merchandising e tudo mais, só que essa promoção foi tão grande que teve aquela explosão de vendas", explica Caio, tentando mostrar como o anime de Demon Slayer soube transformar o mangá “normal” em algo muito maior.
A citação ao sucesso de Tanjiro e Nezuko nessa discussão de sakuga é justa, afinal foram as animações fluídas que ajudaram a promover Demon Slayer pela internet. A cena do episódio 19 com o protagonista envolvendo sua lâmina em poderes especiais se tornou uma das mais replicadas em GIFs animados e estimulou muitas pessoas a correrem atrás do anime para entender sobre o quê se tratava.
Mesmo assim, não necessariamente Demon Slayer foi o embaixador das sakugas da animação japonesa. As séries da Shonen Jump vêm de uma crescente de colocar mais sakugas em suas produções, e hoje mesmo se você der play em algum episódio recente de One Piece provavelmente dará de cara com alguma animação impressionante para o padrão de um anime televisivo.
Com o sucesso de séries “bem animadas” como Demon Slayer, Jujutsu Kaisen e agora Chainsaw Man, os estúdios de anime foram percebendo que essas “obras sakuga” seriam o segredo do sucesso. Afinal, se até uma série de desempenho mediano nos quadrinhos pode se tornar um fenômeno, não seria só fazer com que todos fossem “animes sakuga”? Infelizmente isso não é possível.
Precarização do trabalho
Lembra o que foi dito sobre Mob Psycho 100 ter uma produção saudável? Essa é a exceção, pois normalmente a produção de um anime é envolta no mais puro caos. Com a pressão de uma exibição semanal de anime na televisão, ou mesmo com o prazo apertado de se entregar um bloco inteiro de episódios para um serviço de streaming, os estúdios precisam se virar nos trinta para aquele anime ser produzido, e para isso ser concluído às vezes é necessário recorrer à terceirização ou contratação de animadores com pouca experiência (até mesmo ocidentais, graças às facilidades da internet).
Sendo assim, a discussão sobre sakuga acabou ganhando mais uma função: humanizar o processo de animação. Quando assistimos a um episódio de anime, é muito normal esquecermos que houve um processo para ele ser produzido. "Muita gente esquece que quem está lá animando é um ser humano", alerta Caio, que também já fez trabalhos como animador.
Mas essa precarização do trabalho não parece ser algo exclusivo dos animes hoje em dia. "Nos próprios filmes da Disney temos relatos de problemas de excesso de trabalho. Quando pegamos o primeiro filme da Branca de Neve e os Sete Anões, os animadores contavam uma história como piada, mas eles praticamente alugaram quartos nos hospitais para se tratar após acabarem o filme”, explicou o criador da página Sakuga Brasil. E se engana quem pensa que o sucesso dos animes acaba sendo revertido aos animadores. O animador explica que, embora a animação japonesa seja uma das indústrias que gera mais dinheiro, isso não muda a condição social das pessoas que trabalham nela.
Disney/Reprodução
Os estúdios podem até ter interesse em que todo anime seja uma “obra sakuga”, mas não há dinheiro para bancar isso e não há animadores necessários para tal. Caio detalha: “a indústria agora está se caminhando para um cenário onde todo grande mangá tem que ser uma ‘obra sakuga’, ele tem que ser super bem animado, ele tem que ser super ambicioso, com uma direção incrível, tudo piscando na tela, e não tem animadores o suficiente pra isso”. Mas o entrevistado também lembra que a situação não está boa nem para o estúdio de anime: “em questão de lucro, a venda dos mangás está crescendo, a venda do merchandising tá crescendo. Para os estúdios? Não em sua maioria. Porque os estúdios só ganham o dinheiro para animar. Se eles entrarem como investidores, eles podem ganhar uma parcela”. Resumindo, a conta não está fechando.
Sakuga acima de tudo?
Pessoalmente falando, a exaltação extrema das sakugas na internet me deixa desconfortável. Na função de crítico, acredito que o anime é uma composição de fatores que incluem, além da animação, elementos como trilha sonora, desempenho de atores de voz, roteiro e por aí vai. Aproveitei a conversa com o Caio Nomichi para lançar uma provocação: será que os otakus não estão valorizando mais a animação que uma história bem contada, por exemplo? O próprio Demon Slayer já citado na matéria é uma história originalmente bem básica, mas melhorada pelo anime que deu uma aparada nos problemas do mangá e ofereceu aquele desbunde visual.
Embora faça parte de um site sobre sakuga, a resposta do Caio não foi muito diferente de minhas preocupações: “quando se tem muita animação bonita (...) é muito legal que melhore o material original. Para o telespectador é bom, para o fã é bom, mas acaba sim tapando buraco de narrativa. Tem gente que pega o pior anime do mundo em questão de narrativa e porque tem uma animação bonita o cara vai bater palma e vai falar que é bom. Tem esse efeito de enganar”.
Entretanto, o criador do Sakuga Brasil encerrou a resposta com um argumento matador, algo acima de qualquer ponto de análise sobre roteiro, animação ou qualquer outro elemento: “o anime é para gerar entretenimento. Então se o cara está se divertindo, tudo bem”.
E no fim é sobre isso mesmo, não é verdade?