Se você foi uma criança ou adolescente em meados dos anos 2000, com certeza Digimon não lhe é um tópico estranho. Se em outros países o anime ficou conhecido como um “genérico de Pokémon”, aqui no Brasil os monstros digitais ganharam a força (e o dinheiro) da Globo - e ficaram tão grandes quanto a “franquia original”.
Os fãs nostálgicos da primeira série estão matando a saudade com Digimon no Globoplay, mas a franquia não ficou estacionada nas aventuras de Tai e seus amigos. Os monstros digitais nunca pararam de ganhar novas séries, filmes e jogos para agradar todos os públicos, seguindo firmes e fortes nesse ano de 2022. Como a própria Angélica já havia nos adiantado em julho de 2000, “os Digimons são demais” mesmo!
Eles vão se transformar
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A chegada de Digimon ao Brasil é uma história protagonizada não por monstros digitais, e sim por executivos que tinham a missão de salvar as manhãs da Globo. Tudo começou quando a Record causou estrago na programação infantil da líder de audiência com a estreia de Pokémon em 1999. Comprado para ocupar um espaço no programa da Eliana, sua então contratada, a Record descobriu no anime uma oportunidade única de flertar com o primeiro lugar de audiência e com o prestígio do público jovem. A série dos monstros de bolso foi um fenômeno de merchandising, rendeu um filme no cinema com bilheteria altíssima no começo de 2000 e projetou a carreira de Eliana, a ponto da apresentadora ser convidada a cantar músicas temáticas do anime em outras emissoras (às vezes em palcos com mulheres seminuas… esse final de década era uma loucura na TV abertura).
O anime foi parar nas mãos da Record porque todas as outras emissoras não quiseram adquirir os direitos da série. Para quem não lembra, Pokémon foi estigmatizado por conta de um episódio polêmico, acusado de ser responsável pela internação de várias crianças japoneses vítimas de epilepsia. Com esse histórico péssimo, nenhuma emissora tinha interesse no pobre Pikachu.
Com o sucesso na concorrência, a Globo procurou no Japão alguma produção parecida que pudesse combater a febre Pokémon. Ao descobrir a série Digimon, cujo nome era até parecido com o de sua dor-de-cabeça matinal, a maior emissora do Brasil decidiu que este anime seria seu de qualquer forma. De acordo com o jornalista Gabriel Vaquer do Notícias da TV, a Globo desembolsou cerca de R$ 800 mil para conseguir os direitos da primeira temporada de Digimon, duas vezes o valor médio para adquirir uma animação qualquer naquela época. Mas por que foi tão caro assim? Bem, vamos dizer que a Globo pegou um “pacote premium” com algumas exclusividades.
A primeira temporada de Digimon havia acabado de terminar no Japão e, segundo o contrato, ela só poderia ser exibida no Brasil a partir de setembro, respeitando alguns meses de janela. Como a Globo queria começar a exibição em julho, mês das férias escolares, a emissora pagou a mais para “furar” essa cláusula do contrato. Isso acabou causando uma situação doida relacionada à versão exibida no Brasil: Digimon havia sido adquirido pela Saban para ser adaptado ao mercado ocidental, com direito a cortes, novos nomes de personagens e por aí vai. Como a Globo conseguiu passar na frente, nossa versão de Digimon se tornou um Frankenstein composto por adaptações americanas (abertura, encerramento e nomes) e partes japonesas (todo o resto, inclusive trilha sonora no meio dos episódios).
Aí entrou o marketing pesado da Globo. Disposta a vencer Pokémon e a Record a qualquer custo, a emissora líder fez uma campanha de divulgação nunca antes vista para um desenho animado. Foram lançadas propagandas falando da estreia em vários horários, inclusive no intervalo mais caro da emissora, o Jornal Nacional. Para rivalizar com Eliana, convocaram Angélica para cantar e dançar a música de abertura… uma performance pra lá de excêntrica. Embora as pessoas se lembrem com muita nostalgia de “Digimons, Digitais, Digimons são campeões”, ter a ex-Fada Bela com cosplay de Sora e dançando num fundo verde não é exatamente o que temos de requintado na televisão brasileira.
Todo o dinheiro gasto nessa empreitada deu resultado, pois Digimon foi uma sensação naquele inverno brasileiro. A história das sete crianças mandadas para o mundo digital e acompanhadas de monstrinhos falantes encantou a audiência, os anunciantes e quem estava vendendo produtos licenciados. A Globo finalmente havia conseguido derrotar a Record, que já via a chama de Pokémon dar uma esfriada com reprises de sua segunda temporada.
Enxurrada de Digimon
Com o sucesso de Digimon no Japão (lá o anime é conhecido como Digimon Adventure), a Toei Animation agilizou a produção de uma continuação para as aventuras de Tai e seus amigos já no ano de 2000. Ambientada alguns anos após o final da primeira série, Digimon 02 (se lê “zero dois”) trouxe os veteranos TK e Kari, agora adolescentes, em aventuras com novos digiescolhidos. O novo inimigo era o Imperador Digimon, um humano que utilizava torres maléficas para escravizar Digimons no Mundo Digital. A diferença com a primeira temporada era nítida, e Digimon 02 sofreu com um elenco menos carismático e um roteiro com menos sentido, mas ainda assim conseguiu sucesso o bastante para prosseguir com a franquia..
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Ao contrário de Pokémon, que sempre é uma história contínua, Digimon teve a vantagem de renovar sua história e elenco a cada temporada, trazendo histórias muito únicas. Digimon Tamers (2001) veio com foco em card games, Digimon Frontier (2002) colocou os digiescolhidos para se transformarem em Digimons em uma história ampliando as lendas do universo… e aí a franquia entrou em hiato. A Toei Animation cessou as temporadas anuais e retornou só três anos depois, em 2006 com Digimon Data Squad, dessa vez com elenco mais velho em um grupo de operações táticas. Mais uma vez houve um hiato e a Toei retomou as atividades da franquia com Digimon Fusion, lançado em 2010.
As séries a partir de Digimon Fusion não ganharam adaptação para o ocidente, ficando inéditas no Japão ou licenciadas com legendas através de serviços como a Crunchyroll, como é o caso de Digimon Universe: App Monsters de 2016 (um anime no qual Digimons funcionam como aplicativos de celular), Digimon Adventure: de 2020 (um reboot da primeira temporada) e a atual Digimon Ghost Game de 2021, uma “série de terror” com os monstros digitais.
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A exibição das demais séries de Digimon no Brasil passou longe do sucesso da estreia.A partir de 2001 a emissora já monopolizava a atenção dos otakus com um catálogo de animes de sucesso como Sakura Card Captor e Dragon Ball Z, então Digimon acabou se tornando apenas “mais um” na programação da TV Globinho, dividindo espaço com outros “genéricos de Pokémon” como Monster Rancher. A última temporada de Digimon exibida pela Globo foi a Data Squad em 2009, mas a audiência baixa levou à interrupção do anime sem todos os episódios exibidos. A última passagem de Digimon na televisão brasileira foi com o Frontier em 2011, reprisado pela RedeTV!.
Mais sorte teve quem assistia pela TV paga, até porque ficaram sem a Angélica dançando: as séries até o Data Squad foram exibidas pelos canais Fox Kids/Jetix, já Digimon Fusion teve uma chance no Cartoon Network em 2016.
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Tradição vs Modernidade
Querendo ou não, a franquia Digimon já está no mercado há mais de duas décadas, tempo o suficiente para agora atrair outro mercado bem lucrativo: o da nostalgia. Percebendo que os espectadores da primeira temporada já eram adultos com responsabilidades, boletos e inseguranças sobre o futuro, a Toei Animation viu ali uma oportunidade de abraçar quem sentia falta de momentos mais simples ao lado de Tai e Agumon. Digimon Tri foi a resposta para atingir esse público, uma série de OVA (especiais lançados direto para o mercado de home video) comemorativa mostrando os digiescolhidos da primeira temporada prestes a se tornarem adultos.
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Lançado com uma campanha fortemente apoiada na memória afetiva, Digimon Tri não foi muito além disso. A música de abertura clássica Butterfly e a presença de personagens queridos da época da infância servia apenas para desviar a atenção de problemas graves no roteiro e alguns momentos sem sentido. Para focar apenas nos digiescolhidos da primeira temporada, a Toei precisou inventar uma desculpa bem esfarrapada para sumir com o elenco de Digimon 02, e assim foi tocando com a história por 26 episódios bem arrastados.
Como não havia respondido todas as dúvidas, a franquia ainda ganhou o longa-metragem Digimon Adventure: Last Evolution Kizuna para encerrar de vez a história, sendo este melhor recebido pelos fãs. Uma pena que o “encerrar de vez” ficou só no papel, porque a Toei já está produzindo o filme Digimon Adventure 02: The Beginning para encerrar a trama dos digiescolhidos da segunda série esquecidos durante a série Tri.
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Por sorte, não podemos dizer que a Toei está agradando apenas os fãs que já chegaram à vida adulta, pois o estúdio também tenta conquistar as crianças. Após exibir uma nova versão da série original (odiada por qualquer pessoa que assistiu à série original), a Toei voltou às histórias inéditas com Digimon Ghost Game, o mais recente anime da franquia. Esqueça crianças enviadas ao mundo digital, pois aqui acompanhamos as aventuras do trio Hiro, Rulo e Kyoshiro, três adolescentes de 13 anos de idade estudantes de uma escola de período integral.
O mundo de Ghost Game é muito parecido com o nosso, com as pessoas viciadas em tecnologia e redes sociais, e no começo da trama começam a surgir histórias envolvendo aparições de "fantasmas". Essas criaturas transparentes e assustadoras na verdade são os digimons da vez, e Hiro se vê numa aventura meio sinistra para descobrir informações sobre seu pai desaparecido. Digimon Ghost Game é um sopro de novidade muito bem vindo à franquia. Animes de “terror” (com aspas, claro) para crianças são comuns no Japão, vide séries como Gegege no Kitaro, e essa atual temporada dos monstrinhos consegue misturar muito bem histórias assustadoras com um elenco carismático e animação muito bem feita.
Em paralelo a isso, a franquia Digimon segue firme e forte no mundo dos games. Durante a exibição de Digimon na Globo se tornou muito popular no Brasil o jogo Digimon World de PlayStation 1, mesmo sem lançamento oficial por aqui. No game, controlamos um jovem que precisava tomar conta de um Digimon, e além das lutas havia um lado meio “bichinho virtual” que remete às origens da franquia no Japão.
O anime pode ter tido algumas pausas, mas na editoria games havia sempre um novo Digimon saindo. Nos últimos anos a franquia ganhou vários jogos importantes, como Como Digimon Story: Cyber Sleuth – Hacker's Memory (um RPG de turnos aclamado pelos fãs do gênero) de 2018 e o Digimon Survive (uma visual novel) de 2022, todos bem recebidos por público e crítica.
Onde encontrar as séries Digimon
Com um legado tão rico e séries tão diversas, Digimon é aquele tipo de série que oferece conteúdo para todos os gostos e públicos. Além disso, por trazer uma história diferente a cada temporada é possível começar a acompanhar Digimon a qualquer momento. Mesmo nos jogos também é possível começar de qualquer ponto, facilitando a chegada de novos possíveis fãs nesse universo dos monstros digitais da Bandai. Uma boa sugestão é acompanhar a série de RPGs Digimon Story: Cyber Sleuth, com jogos lançados para PC, PlayStation 4 e Nintendo Switch.
Mas como nosso foco aqui é o anime, várias séries de Digimon estão disponíveis oficialmente no Brasil:
Digimon Adventure está disponível no Globoplay, com dublagem em português. A continuação Digimon Adventure Tri e o reboot Digimon Adventure: estão disponíveis na Crunchyroll, com legendas em português.
Se quiser entrar de cabeça em uma nova história, a Crunchyroll tem as duas séries mais recentes de Digimon com legendas em português, Digimon Universe App Monsters e a Digimon Ghost Game, esta ainda em andamento.