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Arquivo X - 20 Anos | O Legado

A proposta inovadora da reintrodução da ficção científica na TV estadunidense que desencadeou uma nova perspectiva de se fazer série

17.09.2013, às 23H00.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H25

Quando Lost se tornou um fenômeno impressionante de audiência e crítica, o jornal Chicago Tribune fez uma matéria sobre a mitologia da série e desencavou as semelhanças com Arquivo X, que antes da criação de J.J. Abrams, já tinha prendido seus fãs em uma rede de mistérios sem promessas de resolução. O jornal procurou por Chris Carter, criador do Arquivo X, e perguntou a ele o que ele pensava sobre Lost. Carter disse:

"Há buracos onde se pode cair e você precisa evitá-los a cada passo do caminho. E posso te dizer: com programas de mitologia, você tropeça, você cai."

A razão pela qual esse texto sobre o legado de Arquivo X começa falando de Lost é porque de tudo que surgiu na televisão depois da criação de Carter, a história dos sobreviventes do vôo 815 foi a que mais se apoiou nos desafios antes propostos. A diferença é que Arquivo X abria esse espaço à força, tentando provar ser capaz de fazer os fãs esperarem pelas respostas que pairavam no meio daqueles mistérios. Lost usou isso a seu favor. Ela já sabia que os segredos escondidos poderiam funcionar com a audiência, conseguindo ir além.

Um mito chamado mitologia

Segredos, conspirações e sobrenaturalidades não eram levadas muito a sério nos anos 1990. Se uma série se arriscava a falar de fantasmas, ela só mostraria gente vendo vultos e gritando por corredores escuros. Quando Arquivo X resolvia falar de fantasmas, buscava uma contrapartida científica, séria, que chocava o espectador ao fazê-lo pensar que aquilo poderia ser possível. A equipe de Carter se debruçava com dedicação total a encontrar documentos e evidências apócrifas para a discussão dos mais absurdos assuntos. E encontrava. Anos depois, isso forçou qualquer roteirista que se preze a fazer o mesmo.

Arquivo X inaugurou a era das informações escondidas. Lost exigia um mergulho nas mitologias egípcias, tratava de energia eletromagnética, física quântica... Fringe tinha tantos detalhes velados que pra pegar todos eles quase precisávamos de uma enciclopédia. O modo como os roteiristas trabalham agora privilegia o conhecimento prévio. O público passou a ser tratado como capaz de organizar sozinhos os mosaicos dramaturgicos. E foi no mundo provocativo de Arquivo X que tudo isso começou. A série tinha confiança nos mistérios que lançava e, com a resposta positiva do público, redirecionou o trabalho da escrita televisiva. Quando falamos que "o que importa é a jornada" não estamos sendo pueris. É isso mesmo que importa. A capacidade de conduzir espectadores pelo escuro, por anos, torna o resultado final totalmente escudado. Você pode não gostar da resposta, mas já é o fim da linha, e o que você pensa a respeito não poderá mais afetar a série.

Vários maneirismos dramaturgicos que vemos hoje em dia são ecos do que Arquivo X inaugurou na televisão. Se passamos um tempão imaginando quem seriam os Observadores de Fringe, só o fizemos porque antes Arquivo X transformou "personagens sem nome" em protagonistas do centro do mistério. O Canceroso não tinha nome, o Garganta Profunda e X também nunca tiveram, assim como Lost passou várias temporadas usando apelidos dados pelos personagens para nomear uma série de itens da própria mitologia (Os Outros, O Monstro de Fumaça, O Homem de Preto). A solidificação desse sistema de construção de referências e ícones virou sinal de complexidade, de inteligência, e passou a acender uma luz no discernimento do público: "se tem mistério é porque merece ser visto". Virou tudo uma questão do quanto o roteirista será capaz de envolver o raciocínio do espectador.

Personagens enciclopédicos

Até mesmo na dinâmica entre personagens Arquivo X estabeleceu futuras influências. Após a imensa química presente entre Mulder (David Duchovny) e Scully (Gillian Anderson), uma avalanche de derivados policiais ou médicos começaram a usar a técnica do agente masculino e agente feminino que passam por uma tensão sexual que demora para se resolver. Bones e Castle são apenas alguns exemplos. Em Fringe, inclusive, essa dinâmica abraçava até mesmo as responsabilidades de cada personagem dentro da obra: Olivia sendo prática, Peter sendo conceitual.

Vince Gilligan, criador da respeitadíssima Breaking Bad, também saiu do time de roteiristas da série e, mesmo que sua série-solo não tratasse de sobrenatural, ele levou para a base psicológica de sua série uma necessidade de estreitar as relações entre personagem e público. Todas essas séries citadas aqui aprenderam que precisa haver um equilíbrio entre a história e o apelo dos personagens. O público adora histórias inteligentes, mas gosta ainda mais de torcer pelos protagonistas. Em séries procedurais (com casos da semana) isso não costumava ser uma recorrência. O advento da mitologia dentro dessa dinâmica aproximou o público dos afetos de seus heróis. A cada semana uma aventura, mas com uma linha central de acontecimentos que atingia os personagens e, por consequência, nos atingia.

Arquivo X se tornou tão acadêmica que detalhes como a estrutura das temporadas passaram a ser reproduzidos. Grandes estreias, episódios duplos no meio do ano e finais de temporada que eram violentas de tão grandiosas. Até Arquivo X nenhuma outra série tinha conhecido o poder do "to be continued". Outro exemplo são as frases de abertura, que mudavam em episódios importantes e foram se tornando ícones pop. "Eu Quero Acreditar" e "A Verdade Está Lá Fora" são tão marcadas na cultura contemporânea que mesmo quem não viu a série sabe do que se trata. Hoje em dia, séries de muito sucesso tem seus próprios símbolos artpop que se estendem sobre a história formando uma deliciosa rede de referências sagazes.

É possível ver resquícios de Arquivo X em inúmeras produções de hoje. Se hoje usamos a palavra shipper para representar nosso desejo de ver certos personagens juntos, foi porque Arquivo X deu vida e sentido ao termo. Tecnicalidades como a atenção maior à trilha sonora e à luz de um episódio também encontram em Arquivo X o primeiro exemplo de reconhecimento nesse sentido. Junto com a popularidade da Internet vieram os primeiros fenômenos de discussão e antes de Arquivo X, ninguém tinha tanto medo do que significava saber um spoiler. A série deu forma ao futuro da televisão e é o núcleo do que movimenta a engrenagem atual.

Pouquíssimas séries conseguiram tamanho efeito sobre a estrutura da ficção. O que Arquivo X fez pela ficção científica, Família Soprano fez pelo drama, Dawson's Creek fez pelas séries adolescentes e Friends fez pelos sitcoms. A própria Lost, que abrigou tantas referências de Arquivo X, reinventou-se dentro delas e inaugurou outras formas de se contar histórias. Por ter sido o único fenômeno que pode ser comparável, a estrutura de Lost também acabou influenciando novas gerações. De fato, estamos diante dos 20 anos de uma obra que teve tanta importância no cenário dramaturgico que parece ainda mais hediondo o difícil encontro com o fim que ela teve.

Só nos resta torcer pelo terceiro filme, que honre essa importância na prática e não só nas palavras admiradas de uma teoria.