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Arquivo X - 20 Anos | Os Filmes

O primeiro não resistiu ao futuro e o segundo deixou de acreditar

06.09.2013, às 20H05.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H25

No final da década de 90, ao mesmo tempo em que a televisão descobria a própria força através do fenômeno Arquivo X, os estúdios ainda eram receosos de levar essas mitologias para o cinema. É claro que a TV sempre teve sua força mas, até então, era vista como um subproduto, sem o lastro de respeitabilidade que o cinema ganhou ao longo do século 20.

Arquivo X

Outro problema envolvendo a questão era a limitação do acesso ao universo seriado, que seria prejudicial ao espectador leigo, tornando obras como Arquivo X e sua extensa rede de segredos completamente inviáveis para o cinema. Ainda assim, o "inviável" é bastante relativo quando o assunto é dinheiro...

A Fox era só sorrisos pela série e Chris Carter era só angústia nos bastidores. Cobranças vinham de toda parte, principalmente de David Duchovny, que exigia a mudança das gravações de Vancouver para Los Angeles e tentava exercer algum controle sobre o personagem constantemente. Havia uma ebulição dentro do set e outra no mundo lá fora: Arquivo X era uma unanimidade de crítica e público e só mantê-la no ar já não era suficiente, nem para os fãs, nem para os executivos. Assim, a Fox deu o sinal verde a Arquivo X: O Filme (The X Files: Fight the Future), o aguardadíssimo primeiro longa-metragem baseado no universo da série de TV.

Mulder e Scully, heróis em escala global

Para que as qualidades e os problemas de Arquivo X: O Filme sejam avaliadas corretamente, é preciso pensar primeiro no ponto mitológico que a série estava vivendo no final da quarta temporada, quando o filme de 1998 passou a ser uma realidade. Carter vinha trabalhando com uma noção ainda vaga de colonização, que se desenvolvia muito mais pelo aspecto das experiências de clonagem e hibridização humano/alienígena do que por disseminação viral. As abelhas enfim começaram a aparecer e eram o único indício de uma nova abordagem para os planos de dominação por contágio.

Até ali a mitologia estava mais focada em desenvolver o câncer de Scully (Gillian Anderson) para, através dele, expor pedaços da mitologia perante os agentes. Assim que ficou decidido que o filme seria feito no intervalo entre a quarta e quinta temporada (para ser exibido no intervalo entre a quinta e a sexta), Carter se reuniu com sua equipe e tomou a decisão de resolver a crise da doença de Scully e partir para novas perspectivas acerca da trama mitológica.

A quinta temporada começou com Scully se curando, Mulder sendo jogado na dura realidade de que talvez estivesse acreditando numa mentira e com as experiências de mistura de DNA sendo deixadas um pouco de lado. Carter sabia que havia chegado a um ponto onde as cobranças por respostas começariam a superar o deleite com as perguntas e uniu essa necessidade ao que acabou se tornando o filme.

O criador incluiu os rebeldes-sem-face, que tapavam orifícios para impedir a contaminação pelo óleo negro, num primeiro movimento de que esse seria um ponto decisivo dali por diante. Cassandra Spender (Veronica Cartwright) e seu filho (Chris Owens) também apareceram ali como sinal de que o estreitamento das relações pessoais com a família de Mulder era o outro sinal de que o terreno se preparava para resoluções.

A Fox cedeu um bom orçamento e pediu uma trama que pudesse ser vista por qualquer tipo de espectador. Ao mesmo tempo, Carter sabia que precisava lidar com a mitologia, ou os fãs se irritariam. Resolver tudo, entretanto, era inviável. O beco estava mesmo sem saída: precisar falar de mitologia sem poder falar de mitologia. A saída mais viável? Mexer no pouco do que se poderia servir. E foi aí que começaram os enganos.

Havia três pontos sagrados para os fãs da série:

  1. Mulder e Scully são losers do sistema vigente, engolidos por coisas muito maiores que eles. A série parte do maior para o menor e não o contrário;
  2. Boa parte do apelo da série se dava pela esperteza narrativa: mostrar o mínimo possível. Além disso, alienígenas e suas variações (como o óleo negro) eram livres de maniqueísmos;
  3. Querer Mulder e Scully juntos era muito mais legal do que ver a série se tornar um tratado de amor entre eles. A expectativa era melhor que a consumação e a série era a melhor em lidar com isso.

A quinta temporada terminou com os escritórios do porão sendo destruídos e os Arquivos X, novamente, fechados. Mulder e Scully começaram a lidar com questões administrativas e acabaram indo parar, sem saber, numa imensa queima de arquivo que derruba um prédio inteiro para esconder evidências misteriosas.

Do ponto de vista do apelo ao fã, a abertura do filme é fantástica. Ver o óleo negro virando protagonista era algo feito para os espectadores da série. No entanto, a mesma alegria se esvai antes mesmo de Mulder e Scully darem as caras no filme, e o item 2 dessa lista sacra sofre a heresia derradeira. O óleo negro ganha características novas, de gestação, e passa de entidade alienígena a vírus fertilizador. Em menos de cinco segundos a história sofre uma reviravolta de proporções perigosas, que geram uma nova série de perguntas que não deveriam surgir nesse momento do jogo.

A mácula definitiva vem em seguida, com o vírus engravidando seus hospedeiros e gerando uma criatura alienígena mortal, cheia de instintos assassinos vazios, sem racionalidade e que não combinava com a natureza da série. Carter foi acusado de ter vilanizado os aliens para atrair o público leigo, mas acabou causando um problema pra si, porque não podia explicar como o óleo negro nunca tinha engravidado ninguém antes (e ainda precisou explicar as criaturas assassinas com uma "troca de pele" providencial na temporada seguinte).

Claro que com alienígenas matando gente, a coisa toda - que antes partia do maior para o menor - se inverte, e Mulder e Scully precisam evitar danos à raça humana numa proporção global. O item 1 dos nossos mandamentos sagrados sofre o ataque vil: os parceiros se tornam superagentes no cinema. Lá se vai Mulder atrás de sua parceira, no meio do gelo da Antártica, com coordenadas impossíveis, encontrá-la no meio de centenas de outros hospedeiros, acabando com todo o sistema da nave, e voltando com apenas uma abelha de prova. Na época, muitas brincadeiras foram feitas com a impossibilidade dos dois voltarem sozinhos de lá, e Carter até abrigou isso no episódio "Alone", da oitava temporada.

Além da megalomania do roteiro, o filme cometeu erros bobos, como trazer membros do Sindicato que nunca tínhamos visto antes. Mas, ao mesmo tempo, nos presenteou com momentos bacanas, como Mulder abraçando Scully na neve, vendo a nave subir, e fascinado com a chance de presenciar tal coisa. O item 3 da lista acima, efetivamente, foi o único que saiu ileso desse filme. O quase-beijo interrompido pela abelha foi um momento épico do longa e que respeitou devidamente as nossas expectativas de sempre querer mais expectativas.

No final das contas, olhando pra trás, fica claro que não foram tomadas boas decisões e que a empolgação dos fãs era justificada pela febre que nos assolava. O futuro da série começou a ser seriamente afetado a partir dali e essa experiência no cinema acabou jogando as esperanças de novos projetos numa espécie de limbo. Isso até 2008, quando Arquivo X - Eu Quero Acreditar (The X Files: I Want To Believe) estreou e ajudou a piorar essa sensação de deslocamento e inadequação.

Acreditar no quê?

A cobrança por uma nova aventura dos agentes Mulder e Scully sempre houve. Em parte, como uma resposta às constantes declarações de produção e elenco, de que voltariam para o cinema, se fosse possível. E em parte, também, como um pedido desesperado para correções que apagassem o terrível último episódio da série. Um segundo filme era significado de redenção, mas... A redenção nunca veio.

O orçamento de Arquivo X - Eu Quero Acreditar era metade do custo do filme anterior. O anúncio de que a continuação aconteceria trouxe logo a grande pergunta: "Teremos mitologia?". Carter se apressou em responder que não. Provavelmente achou que a mitologia precisaria de muito para ser consertada. De fato, voltar aos supersoldados, à proximidade da data da colonização e ao destino de William poderia exigir da produção uma nova história em escala global. A verdade é que o dinheiro era pouco e a Fox não achava que falar de mitologia depois de tanto tempo do final da série seria benéfico para o filme.

Mais uma decisão questionável pra a coleção, portanto: zero mitologia. O interesse dos fãs se manteria, é claro, por conta da perspectiva de ver os agentes sob aquela nova realidade: fugitivos, sobrevivendo através do trabalho de Scully, deprimidos por terem desistido do filho, e funcionando, enfim, verdadeiramente, como um casal (ainda que numa ótima cena, Scully se recuse a se referir a Mulder como seu marido). Esses pequenos detalhes levariam qualquer fã da série para o cinema, mas num novo mundo, repleto de roteiros hiperfuncionais, não havia mais espaço para os truques de sonegar informações de Carter.

Arquivo X - Eu Quero Acreditar segue tocando e entediando mesmo o fã mais xiita. Se numa cena em que Scully cobra que Mulder não volte mais "para a escuridão" o filme cresce, nas cenas em que os enigmas do padre pedófilo aparecem em versículos e lágrimas de sangue o filme desaba. Carter é inteligente na forma como conduz a trama, revelando quase nada da ligação psíquica entre vítima e agressor, mas em 2008 o cinema de suspense e terror já vivia basicamente do choque, das reviravoltas, do final surpresa. Tudo em Arquivo X - Eu Quero Acreditar é quase singelo e faz o horror do segredo final parecer menor.

Isso deveria ser bom - afinal, Arquivo X não precisaria imitar outros filmes para se fazer notar - mas não funciona aqui. A trama do longa é excessivamente científica (o que pelo menos torna a participação de Scully mais coerente na trama) e o recurso dos fenômenos paranormais parecem encomendados para tornar a presença de Mulder justificada.

Ainda assim, tecnicamente falando, o filme é muito superior ao anterior. A história é limpa, segue um padrão e uma paleta visual constante, mas não tem nenhuma razão de ser. Mulder e Scully não são trazidos de volta por nenhuma razão consistente com o universo de onde vieram. Arquivo X - Eu Quero Acreditar é correto, mas não acrescenta nada aos personagens e parece um episódio regular de meio de temporada, focado em ciências e psicologias já amplamente discutidas nos nove anos de programa.

O resultado foi um filme insípido, que não comove nem chateia, e que passou pelo mundo sem nenhuma relevância comercial. A trilha sonora do filme anterior, por exemplo, é sucesso de vendas até hoje. Já Arquivo X - Eu Quero Acreditar não conseguiu nem mesmo um lançamento digno para seu DVD. Se o filme não arranhou a trajetória dos personagens (como fez o antecessor), acabou servindo, entretanto, para insinuar a perda do apelo da marca, o que seria, enfim, nosso pior pesadelo. Com Arquivo X considerado obsoleto, um terceiro filme se tornaria praticamente impossível.

Carter já disse que voltaria para a mitologia caso o terceiro filme acontecesse. Mas é tarde demais? Um terceiro longa talvez redimisse a série de todas as suas agonizantes tentativas de chegar a um final coerente com o que ela foi. Um final que não fosse tudo que esperávamos, mas que fosse ao menos próximo do que deveria. Ainda há quem acredite, mas Arquivo X lutou contra o futuro e perdeu. Sigamos festejando tudo o que a série foi no passado - porque o que ela foi nenhuma outra conseguiu ser.