É difícil encontrar um personagem com uma trajetória de sucesso tão inusitada quanto a Arlequina. Surgida fora dos quadrinhos no início dos anos 1990, a personagem se tornou uma das favorita dos fãs. Sua popularidade se tornou tão grande que Jim Lee, um dos maiores quadrinistas em atividade e atual publisher da DC Comics, a definiu como “o quarto pilar” da editora, colocando a palhaça no mesmo nível de Batman, Superman e Mulher-Maravilha. Esse fenômeno se deve, em partes, por causa da onipresença da personagem, que desde sua estreia na clássica série animada do Homem-Morcego já ganhou versões em quadrinhos, filmes e até video games. Sem se preocupar com uma possível saturação de sua personagem, a DC lançou em 2019 Harleen, uma HQ publicada dentro de seu selo para maiores, que chegou ao Brasil apenas este ano. Recontando a origem da personagem de maneira inventiva que redefine não apenas a Arlequina, mas todo o universo do Batman a partir da perspectiva da criminosa, o quadrinho criou um novo marco na história da vilã ao colocá-la na lista de best-sellers do The New York Times.
Harleen foi um dos primeiros lançamentos do Black Label, selo da DC Comics dedicado a histórias para maiores que não precisam se amarrar à cronologia da editora. A trama escrita e desenhada por Stjepan Šejić poderia se valer das características que definem a linha editorial para criar mais uma das narrativas“sombrias e realistas” que se valem apenas de violência e choque para passar sua mensagem. Porém, o croata toma uma direção diferente e atinge esse objetivo com elegância. A HQ tem como base a origem clássica da Arlequina, em que a psicóloga Harleen Quinzel chega ao Arkham para estudar o Coringa e acaba se apaixonando pelo psicopata. Como resultado dessa paixão improvável, ela abandona a sanidade e se torna uma criminosa que auxilia o Príncipe Palhaço do Crime em seus atos vilanescos. Mas, dessa vez, esse é apenas o nível mais básico da história, que se dedica a investigar a trajetória da dra. Quinzel além da influência do Arlequim do Ódio.
O primeiro trunfo de Harleen é desenvolver camadas em torno de sua protagonista. Ainda que funcional, a origem clássica da Arlequina escrita por Paul Dini e Bruce Timm deixa escapar qualquer personalidade da personagem antes de seu encontro com o Coringa. Sem pressa em chegar ao grande momento de virada, a HQ de Stjepan Šejić dedica edições inteiras a estabelecer quem é Harleen Quinzel. O quadrinista coloca uma lupa sobre as qualidades e as falhas de uma pessoa idealista, insegura, altruísta e até mesmo antiética, que tem como grande objetivo desenvolver uma tese a respeito do quanto a falta de empatia afeta - e até cria - os mais perigosos criminosos de Gotham.
Divulgação/DC Comics
Enxergando a Arlequina de forma complexa, a história evita prendê-la ao Coringa sem minimizar a importância do Palhaço para a sua transformação. Ao invés de tratá-lo como seu lado sombrio, Harleen aborda a presença do Arlequim do Ódio mais como um catalisador, especialmente por ele despertar um sentimento tão intenso quanto a paixão. Destacando o lado amoroso dessa relação, a história pode causar estranheza naqueles menos familiarizados com sensualidade em uma HQ de herói. O autor por outro lado, enxerga essa dinâmica como peça fundamental para a jornada da personagem. “O romance, em geral, é uma oportunidade para descrever a humanidade em seu estado emocional mais vulnerável. Quanto mais complicado o romance, mais intensa é a resposta que você pode obter de seus personagens”, disse ao CBR. Reconhecendo influências em casais famosos da cultura pop como A Bela e a Fera e até mesmo Christian Grey e Anastasia Steele de 50 Tons de Cinza, Šejić cria um vínculo bastante crível para a dupla, mesmo que esse relacionamento esteja condenado a não acabar bem.
Ainda que ele seja parte importante de sua degradação, dessa vez não é o romance que a define. Ao CBR, Šejić revelou também que uma de suas grandes inspirações para a sua versão da Arlequina foi Michael Corleone, o personagem de Al Pacino na trilogia O Poderoso Chefão. “Inicialmente, ele não quer ser parte dos negócios da família, ele acredita não ser parecido com nada daquilo. Porém, o atentado ao seu pai e o amor pela família o empurram para lá, e uma vez em que você cruza a linha, não há como voltar”. Para o artista, essa noção de que o lado sombrio da personagem não está completamente ligado ao Sr. C é uma forma de enxergá-la por inteiro. “Para mim, o conceito desde o início é que ela é uma psiquiatra, uma mulher presa em sua própria mente que pode compreender a própria psicose, entender a severidade de suas ações e ainda assim encontrar novas formas de se justificar”.
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Outro mérito da história é o grande destaque reservado para Gotham. Mais do que cenário, a cidade se torna uma espécie de personagem ao expor Harleen a toda a sua excentricidade. De assassinos psicóticos a sistemas ineficientes, passando por atentados graves, o lugar gera questões que desafiam as crenças da personagem ao mesmo tempo em que propõe debates para o leitor. Questionar noções básicas como o famoso “código do Batman” trazem temas que não se esperaria em uma história cuja grande chamada é a origem da Arlequina. Demonstrando grande familiaridade com esse núcleo, Šejić brilha ao entregar uma história que mescla world building e estudo de personagens em seu primeiro roteiro para a DC Comics.
Ainda que bem escrita, a história não seria a mesma sem a impressionante arte de Stjepan Šejić. Conhecido por curtas passagens nas revistas do Aquaman e da Liga da Justiça, o artista mostra todo o seu potencial na minissérie. Com sua arte digital, ele brinca ao alternar traços mais grosseiros com uma riqueza de detalhes que pode parecer extravagante à primeira vista, mas que aos poucos ajuda a narrar esse conto. Equilibrando passagens de sonho e alucinação com a sujeira do mundo real, o croata cria cenas impactantes que são ressaltadas pelo formato da revista - mais próximo ao do magazine - para criar cenas que ora conferem rapidez a diálogos afiados, ora impressionam com páginas duplas deslumbrantes.
Divulgação/DC Comics
O futuro nunca pareceu tão brilhante (e louco) para a Arlequina
Quando o primeiro volume de Harleen foi publicada nos EUA, Stjepan Šejić revelou que seu plano era criar três minisséries para contar a história da Arlequina nos moldes de uma grande tragédia grega. A primeira seria o início do romance do Coringa em uma irônica versão de Silêncio dos Inocentes, enquanto a segunda mostraria a carreira da dupla no crime aos moldes de Bonnie & Clyde. Por fim, sua trilogia se encerraria com a ruptura com o Palhaço do Crime e uma aproximação com Hera Venenosa com inspiração em Thelma & Louise. Segundo o autor, seus planos dependiam das vendas da primeira história. Considerando que na última semana Harleen chegou à lista de best-sellers do The New York Times, é possível afirmar que sua jornada está longe do fim. Se a DC seguir investindo em universos autorais, é possível que esse seja apenas o início de uma longa jornada para a boa e velha Quina.
Harleen e as HQs da DC Comics são publicadas no Brasil pela Panini.