Em 1994, Eduardo Miranda, chefe da divisão de cinema da Manchete, foi chamado para uma reunião com o diretor de programação da emissora e representantes da distribuidora de brinquedos Samtoy. O acordo era simples: a empresa forneceria 52 episódios de um desenho japonês que havia feito sucesso no Japão no meio da década de 1980 e estava ganhando fãs na Europa. Em troca, o canal ofereceria espaços para a exibição de propagandas dos brinquedos relacionados à série. Tudo dependia do OK de Miranda, que havia assumido o cargo há pouco mais de um ano e, a princípio, buscava novos programas para o pacote infantil do canal.
"Me sentaram para assistir a um trailer de 15 minutos do desenho. O vídeo era exatamente assim: sangue, violência, tentativa de suicídio, autoflagelação, cara furando os olhos... aí você pensa: estou com uma programação completamente infantil. Como posso dar um parecer positivo a isso?", justificou aos presentes na sala, dizendo que não poderia exibir o novo desenho no bloco infantil da emissora.
"O clima na sala era tenso. O departamento comercial queria muito aquele desenho", recorda Miranda, que assumiu o cargo numa época de crise da Manchete, quando a emissora sofria com baixos índices de audiência e não tinha dinheiro para renovar sua programação. A Samtoy também depositava grandes esperanças na reunião: eles haviam recebido não de outros canais, como a Globo, e a Manchete era a última esperança de exibir o desenho na TV aberta. Pressionado pela emissora e pelo licenciador, Miranda quis assistir a episódios completos para que pudesse avaliar melhor a série - algo que nenhuma outra emissora havia pedido.
Três dias depois, a Samtoy enviou cinco capítulos do desenho para Miranda. "Na hora, entendi que não tinha nada a ver com aquela violência sem nexo do promo", o diretor deu o seu parecer positivo e, em 1º de setembro de 1994, Os Cavaleiros do Zodíaco foram pela primeira vez ao ar na televisão brasileira. Essa é a história de como surgiu um dos maiores fenômenos da animação japonesa no Brasil - e como ninguém estava preparado para ele.
As lendas de uma nova era
Fechado o acordo, a Samtoy procurou o estúdio Gota Mágica para a dublagem dos episódios que seriam exibidos na TV Manchete. Mário Lucio de Freitas, dono do estúdio, incumbiu a Gilberto Baroli, que já havia trabalhado em tokusatsus (seriados de monstros gigantes) como Jaspion e Changeman, a tarefa de dirigir a dublagem de Cavaleiros do Zodíaco. "A gente começou a dublar como se fosse mais uma série japonesa", recorda Baroli.
O material era confuso. O estúdio havia recebido roteiros em inglês, que foram traduzidos para o português, mas o desenho estava dublado em espanhol, e o que estava na tela não batia com o script. Baroli tentou adaptar as frases conciliando o roteiro em inglês e as falas em espanhol. "Tentamos dar uma certa lógica, mas não tinhamos ideia da continuidade da série, porque não me deram tempo de assistir. Então, eu e os atores fomos pensando e fazendo a dublagem", recorda.
Como o tempo para dublar era curto, Baroli também não teve muitas opções para escalar as vozes do desenho. A única exigência de Mario Lúcio, dono do estúdio, era que os papeis de Seiya (o Cavaleiro de Pégaso e protagonista da série) e Saori Kido (a reencarnação de Atena a qual os cavaleiros precisam proteger) fossem dublados pelos filhos de Gilberto, Hermes Baroli e Letícia Quinto. "Fui vendo quem estava à disposição no mercado", explica o diretor. Assim, os papéis dos demais heróis da série, Hyoga, Ikki, Shun e Shiryu, acabaram caindo nas mãos de Francisco Bretas, Leonardo Camilo, Ulisses Bezerra e Sérgio Ruffino.
A urgência da dublagem também fez com que Baroli precisasse agir rápido para suprir vários imprevistos. No início da dublagem, Sérgio Ruffino precisou viajar com uma companhia de teatro da qual fazia parte e, então, Élcio Sodré, que dublava o narrador da Guerra Galáctica, o torneio que abre os primeiros episódios do desenho, se tornou a voz de Shiryu.
Vários dubladores fizeram mais de um papel na série - o próprio Baroli chegou a assumir a voz de cinco personagens, incluindo o vilão da série, o Mestre Ares, que até então era dublado por Valter Breda. "Ele precisou viajar com o teatro e, como não tinha ninguém para substituí-lo, eu mesmo passei a fazer o papel", conta o dublador.
O despertar do mito
Cavaleiros do Zodíaco começou a exibir uma audiência acima da média para a Manchete. "As novelas e o jornalismo ao vivo seguravam, mas o resto da programação era indigente", relembra Eduardo Miranda. Nas primeiras exibições, o desenho já tinha entre quatro e cinco pontos no Ibope (o dobro da média da programação infantil do canal).
Com uma audiência acima do esperando e sem episódios novos, a Manchete precisou se desdobrar para evitar ao máximo as reprises e manter o interesse das crianças na série. "Comecei a editar episódios e bolar resumos da semana, para poder ganhar tempo, pois a Gota Mágica nem sempre tinha episódios novos para mandar e eles precisavam de tempo", recorda Eduardo.
Entretanto, o interesse pelas aventuras de Seiya e os demais Cavaleiros só aumentou. Quando a Manchete anunciou ter adquirido um novo pacote de episódios, Cavaleiros alcançou picos de 15 pontos no ibope. O desfecho da saga do Santuário - a primeira e mais icônica da série -, foi exibido em horário nobre, entre as 19h e as 20h. O sucesso também veio para a Samtoy. "O licenciador conversava comigo com um sorriso de orelha a orelha. Do primeiro lote, com previsão de 90 mil unidades, ele vendeu 400 mil", recorda Miranda. No ano seguinte, a febre continou forte: o dia das crianças e o Natal de 1995 venderam, juntos, mais de 1 milhão de bonecos dos Cavaleiros, gerando um faturamento de mais de 50 milhões de reais.
"Um dia, cheguei na Manchete e estavam cantando a música-tema de Cavaleiros no programa da Xuxa, na Globo. Eu olhei e não acreditei. Estava na Mega-Sena", recorda Miranda, que, após o fim da Manchete, foi trabalhar na Globo, onde ficou de 1999 até 2012. "Lá, ouvi dos próprios executivos o trabalho que dei com Cavaleiros." O sucesso de Seiya e seus amigos abriu as portas para uma enxurrada de desenhos japoneses na Manchete: Shurato, Sailor Moon, Yu Yu Hakusho, Samurai Troopers (que, aqui, virou Samurai Warriors), criando um filão de animes e mangás no país que continua firme até hoje.
Longa vida, lendários Cavaleiros
Como um desenho que enfrentou diversos percalços para chegar à televisão conseguiu fazer tanto sucesso? A resposta é um mistério tanto para quem ajudou a trazer a série ao Brasil como quem está envolvido com ela até hoje. "São vários fatores, há a história, a mitologia, a questão dos signos... Na época, você não tinha esse formato de desenho. Por incrível que pareça, acredito muito que Cavaleiros deu sorte. Foi lançado na hora certa, e na época certa", explica Eduardo Vilarinho, dono do CavZodiaco.com.br, que, há 12 anos no ar, é o principal site de fãs de Cavaleiros no Brasil.
Vilarinho foi um dos milhares de fãs que se apaixonaram pela série em sua exibição original, na Manchete. Aos 18 anos, quando começou a trabalhar com programação, decidiu aplicar seus conhecimentos em um assunto que gostava. "Começaram a surgir muitos sites de fãs, e resolvi fazer um com uma linha mais profissional", conta Vilarinho. Na época da abertura do site, a série chegou à TV fechada, no Cartoon Network, e Vilarinho bateu na porta do atual licenciador do desenho no Brasil, Luiz Angelotti. "Ele me recebeu bem e, como várias empresas queriam licenciar produtos novos do desenho, me indicou para auxiliá-las". Assim, o fã acabou transformando paixão em profissão, prestando consultoria para empresas com produtos relacionados à série.
Eduardo Miranda dá uma explicação semelhante à de Vilarinho e endossa que a Manchete já tinha alguns programas que atraíam potenciais fãs do anime. "Nós tinhamos Jaspion, Changeman, Flashman, Jiban e todos os tokusatsus que criaram uma base para que Cavaleiros chegasse", explica. Entretanto, diz que o sucesso de Cavaleiros foi maior porque seu apelo era universal. "Caiu no gosto popular. Quem gostava de mitologia foi assistir, quem gostava de astrologia, de aventuras épicas, de desenhos japoneses, de aventura por aventura, então foi aglutinando vários grupos e gerou essa maravilha de resultado."
Mesmo 20 anos depois da estreia do desenho no Brasil, Miranda ainda se empolga ao falar sobre seu legado. Pelo envolvimento com Cavaleiros do Zodíaco, acabou recebendo a alcunha de "o pai dos animes no Brasil", anos depois, em eventos ligados a animação japonesa."Em todos os eventos e palestras que dou sobre a série, não há um que não diga que o desenho o fez sofrer, que o afetou de forma errada. Todos são fãs felizes, que agradecem pela infância que tiveram, e isso me emociona em um ponto máximo. Você saber que marcou uma geração, que deu uma infância feliz, é um reconhecimento que me deixa muito orgulhoso. É o verdadeiro legado da série."