Todos os dias, em seu encarceramento, em meio a um ritual maçante que inclui se desfazer de seus excrementos e tomar banhos de sol coletivos, um hipotímico Arthur Fleck é intimado insistentemente, tanto por guardas quanto por outros confinados, a contar uma piada. Uma mísera piada da qual todos querem rir, mas que, infelizmente, nunca vem, gerando frustração e descontentamento. Com isso, a partir dessa inesperada quebra de expectativas, o outrora anárquico e (talvez por isso) idolatrado Coringa some diante de todos, dando vez à apatia e ao alquebramento de uma pessoa bem menos hipnotizante.
Essa mesma desolação agressivamente transpassou os limites do Asilo Arkham. Coringa – Delírio a Dois (Joker - Folie à Deux, 2024), a esperada continuação do bilionário sucesso cinematográfico, fez os fãs do primeiro filme e da persona do psicótico involuntariamente glamourizado encarnada por Joaquin Phoenix torcerem o nariz em uníssono para essa sequência, tornando-a um retumbante e inesperado fracasso. Faltaram piadas a Arthur Fleck. Faltou energia. Faltou insanidade. E, a partir daí, faltou disposição do público em seguir sua tortuosa jornada pelos recônditos sombrios da própria psiquê.
O mezzo musical do diretor Todd Phillips descontrói com a finesse de um trator desgovernado a aura equivocadamente romantizada da loucura e do sadismo de seu protagonista e se preocupa em expiar os pecados do longa anterior, explorando lugares mais frágeis e vulneráveis da doença mental como, de fato, ela é: triste, solitária e nada, nadinha engraçada. A desconstrução já começa com a inusitada escolha do gênero, um musical (gênero clássico da cinematografia estadunidense, mas que tende a afugentar grande parte do público sempre que pode), entoado por vozes propositadamente esganiçadas e angustiadas, trazendo dor e crueza ao falar de amor e de planos felizes para o futuro a dois.
Nem foram as inúmeras e clássicas canções americanas a maior afronta ao fiel séquito de fãs do Coringa, mas sim a decisão do diretor em explorar novos contornos do personagem, talvez por entender que a sua criatura, tal qual o mostro de Frankenstein, tornou-se uma ameaça maior e mais aclamada do que se esperava.
No primeiro longa, o personagem era id (instância do eu, responsável pelos nossos impulsos mais básicos, como a sexualidade e a agressividade, segundo a psicologia) puro, selvagem e irrefreável, seja descendo escadas e dançando hipnoticamente, seja matando yuppies e apresentadores de televisão a sangue frio, catalisando um perigoso culto à imagem do serial killer, na tela e fora dela, e sendo erroneamente interpretado como uma vítima social avalizada para fazer justiça com as próprias mãos, satisfazendo seu ego e bel-prazer de forma antissocial e amoral e encantando o público sedento como em um coliseu romano dos tempo modernos.
Todd Phillips sabiamente desistiu da piada que contou e logo tratou de tornar Arthur Fleck um arremedo de vilão, um farrapo (des)humano, que transborda carência e vulnerabilidade, bem distante do arauto da catarse caótica que se enraizou no inconsciente coletivo do público. Em várias cenas, o protagonista toma suas medicações e mostra para os espectadores que engoliu os comprimidos direitinho, objetivando domar o seu traço de personalidade mais assassino e inconstante. O que o diretor não contava (será?) é que o Coringa se transformou em um refém da sua própria sociopatia e de uma disponibilidade irrestrita para corresponder a uma idolatria predatória, sendo acuado tanto por cinemas esvaziados quanto por sua própria sombra já na cena inicial, em uma ótima alusão aos descerebrados e maníacos personagens de Looney Tunes e já deixando claro o desejo de se libertar da sombra do filme anterior.
Coringa – Delírio a Dois, afinal, é sobre doença mental. É sobre uma mente fragmentada, bipolar e pouco vistosa. É sobre uma pessoa que (sobre)vive à margem, sem fãs arrebatados ou violência de videoclipe. Não é sobre um supervilão de gibi (e, antes que me critiquem, vamos lembrar que o primeiro longa também não era sobre o Coringa dos quadrinhos...).
A loucura mais, digamos, desvairada, só toma conta de Arthur quando é inflamado pela presença da Arlequina defendida por Lady Gaga, a presença feminina que preenche as lacunas da criança abandonada e ávida por colo em um homem transtornado, cuja virilidade é frágil e insegura. A pobre menina rica, onipresente e borderline personifica o fandom do Palhaço do Crime, antecipando malignamente o fenômeno que veríamos fora das telas – o melancólico abandono a um adoecido ex-Coringa, seja nas escadas de Gotham ou nos cinemas, onde tanto já reinou, dançou e matou, absoluto.
Uma quebra de expectativas muito bem realizada e planejada. Mas parece que ninguém quis sequer ouvir a piada. Queriam que o Coringa contasse outra.
Sobre o autor desta coluna: Charlles Lucena é Médico Psiquiatra, Cinéfilo e Leitor de Quadrinhos, daqueles que já viram diversas reinvenções do Coringa ao longo dos anos.