[Atenção: artigo contém spoilers!]
O que Chacrinha, Chorão e o Coringa têm em comum é que eles não vieram para explicar, e sim para confundir. A frase de efeito carregada como lema está na essência do Coringa, e mesmo um diretor obcecado pela ordem como Christopher Nolan entendeu que atribuir sentidos ao vilão contribuiria para desarmá-lo - a não ser que se atribuam TODOS os sentidos ao Coringa, ao mesmo tempo, e então a cacofonia funcionaria como uma tempestade perfeita, em que o palhaço pode exercer plenamente seu papel de vórtice do caos. É por isso que o personagem de Heath Ledger justifica sua cicatriz de meia-dúzia de jeitos diferentes.
Não faz muito tempo, mas em 2008 o mundo parecia um lugar muito mais fácil de habitar e entender, politicamente falando, e quando o Batman apela para a solidariedade dos cidadãos de Gotham para derrotar aquele Coringa, sua vitória contra a anarquia não soa uma fantasia ingênua. Evidentemente as coisas estão muito diferentes aqui em 2019, e o filme de Todd Phillips se imbui da cacofonia de sentidos do Coringa para fazer um paralelo com a convulsão de narrativas que vivemos hoje. Na era do isentismo e das polarizações, todos os pontos de vista conflitantes parecem válidos (ou são validados na insistência de quem os advoga), e posicionar-se no meio da sobrecarga de perspectivas e informações é um esforço cada vez mais estressante.
No filme de origem, fica mais difícil seguir a receita de 2008 e colocar Joaquin Phoenix para narrar em retrospecto sua própria história em primeira pessoa. Se Phillips pretende fazer do conflito de narrativas sua ferramenta principal, isso tem que ser resolvido na trama, no presente. Nesse sentido, o roteiro de Coringa funcionará melhor quanto melhor for executado esse plano feito com pistas falsas, que obviamente envolve ludibriar o espectador.
São três as esferas principais de narrativas conflitantes: a social (a relação com o outro palhaço), a familiar (o mistério da paternidade) e a afetiva (a relação com a vizinha). A primeira serve mais de gatilho da vitimização de Arthur Fleck e é a mais tênue (há um conflito porque Randall ao mesmo tempo se solidariza e antagoniza com Arthur, na subtrama do revólver, e muito da sutileza se deve à atuação de Glenn Fleshler). A afetiva é a mais esquemática e menos bem resolvida no filme, e Phillips precisa recorrer a flashbacks ao final (as cenas do casal que só estavam na cabeça do Coringa) para deixar clara a separação do que é e do que não é real. O espectador é ludibriado mas ao mesmo tempo tratado com paternalismo na exposição didática.
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A esfera familiar, espinha dorsal do filme, é a mais satisfatória das três, por dois motivos; primeiro, ao contrário da história da vizinha, o conflito de narrativas é levado ao limite (Thomas é pai, depois a mãe é louca, depois vem a versão da conspiração médica contra a mãe, por fim aparece a fotografia com a dedicatória apaixonada de Thomas para embolar tudo), e segundo porque Phillips abraça o enigma e mantém a questão aberta. Se Coringa é o filme do palhaço de Schrödinger, por assim dizer, então essa subtrama familiar é a mais ilustrativa. O fato de Arthur não conseguir determinar com 100% de certeza a verdade sobre seu passado é o que sacramenta, afinal, sua queda definitiva na loucura.
Desde o início do filme, Arthur é feito dessa contradição. Além das três esferas de relação, o conflito de narrativas está no próprio corpo do comediante, porque sua gargalhada descontrolada pode mesmo ser um transtorno médico tipo Tourette ou pode não ser (dúvida que o próprio personagem verbaliza no final). Phillips está tentando acusar o coitadismo? Isso é mais um ponto nervoso do filme que o diretor deixa exposto. Nos quadrinhos, é fácil imaginar uma versão da condição médica, previsível, por exemplo em que o Coringa se travestiria de idosa para explorar a bondade das pessoas, mas daí o sentido fica bem claro - e em boa medida inofensivo. No filme, em que Arthur ao mesmo tempo se vê agente e vítima do que lhe ocorre, num grande pacto social pelo constrangimento, tudo é bem mais insidioso.
O cinema americano de massa feito neste século deixa pouca margem para o mistério; é uma herança das narrativas de fundo psicologizante que se firmaram com os anos depois da explosão da psicanálise, na metade do século 20. Em meio a uma epidemia de superexplicação hoje, e também de uma profusão de filmes de origem, psicologizar e didatizar cada passo das motivações de personagens acaba cerceando as possibilidades narrativas desses filmes. Hoje um arco de personagem como o de Quaid n'O Vingador do Futuro original seria impensável, em que ao mesmo tempo ele é e não é artífice da sua jornada (quando um produtor perguntou na época para o diretor Paul Verhoeven qual versão era a verdadeira na história de Quaid, Verhoeven teria respondido: "o que isso importa?").
No fim é possível enxergar Coringa como o filho bastardo dessa tensão: a "velha" Hollywood e a atual, a tentação do mistério disputando espaço com o conforto das certezas. É nesse campo que o filme se encontra, e calha de ser um reflexo do ambiente de fake news que habitamos. Coringa às vezes tem receio de abraçar completamente a esquizofrenia das versões conflitantes de narrativa; se o fizesse, aí sim daria para falar em espírito anárquico revolucionário: quando o sentido nos escapa, valem todos os sentidos.