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Por que Coringa não tem nada a ver com John Wick

A violência dá forma aos universos dos dois filmes - mas de jeitos opostos

02.10.2019, às 14H35.
Atualizada em 28.02.2024, ÀS 00H49

Se um filme às vezes pode ser mais inteligente do que seu próprio realizador, talvez Todd Phillips seja o exemplo da vez. Só isso explica a comparação simplista que o diretor fez entre Coringa e John Wick 3 para responder às perguntas sobre a violência em seu filme - partindo do princípio de que Phillips a fez por ingenuidade e não por má-fé.

Em entrevista à Associated Press, ele diz que não entende as duas medidas distintas de como os filmes são recebidos. "Quando você diz 'oh, acabei de ver John Wick 3', ele é um homem branco que mata 300 pessoas e todo mundo ri, torce e vibra. Por que esse filme é pautado em parâmetros diferentes? Honestamente não faz sentido para mim", diz o diretor. Phillips reconhece que Coringa pode ter implicações no mundo real, mas reduzir toda a discussão sobre encenação da violência apenas ao que é "fictício" ou "real" está longe de dar conta da questão.

Tanto Coringa quanto John Wick usam a violência para dar forma a seus universos ficcionais. A violência em Coringa é potencializada pela escolha de caracterizar Gotham City como uma Nova York muito específica, a do cinema dos anos 1970 e 80 - em outras palavras, pela escolha de trazer a ficção para perto da História. No caso de John Wick, porém, as relações com o que se entende como "mundo real" são refeitas e frequentemente negadas em nome de uma fabulação que tem mais a ver com o universo do circo ou dos desenhos animados.

Tudo em John Wick existe dentro de bolhas deslocadas da realidade, desde o hotel Continental (com sua moeda própria e suas regras de finesse) até os limites do deserto (com sua fortaleza e seu oásis em lugar nenhum). A referência da trilogia é o humor das comédias de Buster Keaton, em que espaços são pensados mais pelo potencial de situações limítrofes do que por sua familiaridade. Então a geografia de John Wick responde, acima de tudo, a uma lógica plástica: terraços com pombos, trens lotados, pavimentos labirínticos, ruínas de iluminação barroca. Em John Wick as pessoas "reais" são uma multidão de figurantes, elas mal participam do filme para além do fato de serem objetos de cena e obstáculos da ação.

Essas escolhas são fundamentais para sacramentar o conceito que John Wick - ou boa parte dos filmes de artes marciais, no caso - faz da violência, esvaziada de repercussões e reduzida a uma questão estética. Que os duelos de John Wick 3 às vezes terminem com uma punchline cômica e personagens aceitando sua derrota é só mais um elemento em um filme que tem o escapismo como projeto. Coringa é o anti-escapismo, e todo o seu projeto - dos comentários sobre a mídia à maneira como a câmera se deixa seduzir por Joaquin Phoenix - tem o objetivo de furar qualquer bolha de alienação.

Ao escolher a violência como tema, John Wick está interessado em seu potencial coreográfico, em analisar o impacto no corpo, em testar o limite do corpo. É uma análise quase clínica da violência, desinteressada de contexto. Já Phillips precisa da violência como um dado social para que seu filme tenha algo a dizer. Em John Wick a violência é uma dança e exige duas pessoas. Em Coringa, ela exige todos nós.

Que Coringa seja protagonizado por um palhaço é a ironia na comparação. O circo que Phillips monta é muito diferente do "circo" lúdico de John Wick 3, infantil no resgate da inocência e da simplicidade do picadeiro. Não poderia ser muito diferente, afinal: Coringa é um filme construído em cima do diálogo crítico de metalinguagem com filmes do passado, então seu "circo" só poderia ser um comentário sobre a natureza dos palhaços e dos circos, e por consequência seu destino inequívoco só pode ser incendiá-lo.