“Heróis não fazem isso”. Roubar? Torturar? Chantagear? Matar? Não. Acredite se quiser, mas essa frase virou manchete essa semana ao se referir a uma situação muito mais mundana: fazer sexo oral. De acordo com Justin Halpern, o co-criador da animação Harley Quinn, os executivos da DC censuraram uma cena na terceira temporada que sugeriria que o Batman -- no bom português -- chuparia a Mulher-Gato. E a justificativa veio nessa forma: “heróis não fazem isso”.
Antes de entrar no mérito se essa frase faz sentido ou não -- spoiler: ela não faz --, é importante um breve contexto. A série é explicitamente indicada para maiores de 18 anos em razão das cenas de violência e até das relações românticas entre seus personagens. Logo, essa decisão não vem para preservar o público infantil, ou impedir que os roteiristas corrompessem o espírito da produção. Pelo contrário, o momento estaria de acordo com as temporadas anteriores de Harley Quinn. Além disso, a cena em questão ficaria apenas no sugestivo, ou seja, a DC não estaria financiando um vídeo pornô estrelado por suas criações. Seria, realmente, só mais um trecho explorando a vida cotidiana e adulta do casal. Por que, então, impedir que algo do tipo fosse para o ar?
Vender boneco definitivamente não é o que está por trás desse discurso, embora tenha sido usado no pacote de justificativas dos executivos. Se fosse esse o caso, uma boa parcela de obras da cultura pop com classificação etária baixa ou livre sequer teria saído. A Viúva Negra nunca teria sido hipersexualizada na sua apresentação no MCU, em Homem de Ferro 2, nem a Mulher-Maravilha teria sido enquadrada de baixo para cima no primeiro Liga da Justiça -- para citar dois exemplos do universo de super-heróis. Afinal, sugestivo pelo sugestivo, tudo leva ao sexo. Trata-se, portanto, de uma questão que vai além da dita decência. Mais do que o moralismo dos representantes da editora, o que está em jogo é uma relação de poder: a mulher pode ocupar uma posição de submissão, mas o homem não.
Veja bem, não estou aqui discutindo preferências sexuais alheias, muito menos de personagens ficcionais. O ponto é que esse discurso, atribuído ao Batman, não é surpreendente para a maioria das mulheres que já estiveram em relações heterossexuais. É um fato: alguns homens adoram a ideia de ver uma mulher ajoelhada na sua frente, mas retribuir a “gentileza” é impensável. Colocar-se numa posição de servir ao prazer da parceira não seria certo. Não seria coisa de herói.
Essa fala dos executivos ecoa, portanto, não apenas como o desejo da mulher é posto em segundo plano -- senão completamente desconsiderado --, mas também essa ideia de que nas relações, principalmente as héteros, a mulher é um objeto a serviço do seu parceiro, e não um sujeito que dá e recebe afeto. Além de ser ultrapassado e, honestamente, ofensivo, perpetuar esse raciocínio normaliza relacionamentos desbalanceados e impõe restrições toscas às possibilidades e aos prazeres do sexo. A mulher perde, óbvio, mas o homem também!
Tendo em vista que ficção e realidade se retroalimentam, não dá para desvencilhar a decisão final da DC de um ponto de vista machista sobre o que cabe à mulher e ao homem. É um olhar restritivo que, embora não represente nenhum grande dano à trama da série, desperdiça uma oportunidade de humanizar a figura do Batman e, em última instância, de quebrar o status de tabu de algo tão agradável quanto o sexo oral. A boa notícia é que essa censura repercutiu bastante nas redes sociais e o debate extrapolou o cercadinho da cultura pop. Talvez seja uma boa lição para os executivos da editora: os fãs esperam que um herói, sim, se preocupe com o prazer da sua parceira. No imaginário coletivo, o Batman pode até ser riquinho e mimado, mas esse tipo de egoísmo ele não tem.