A meses de lançar o derradeiro Guardiões da Galáxia, franquia da Marvel que o levou de diretor indie a um dos nomes mais relevantes do cinema mainstream, James Gunn deu um passo substancial na sua carreira e assumiu o comando do agora chamado DC Studios, ao lado de Peter Safran. Na divisão, mais uma das novidades trazidas pelo agora CEO da Warner Bros. Discovery David Zaslav, a dupla será responsável pelos filmes, séries e animações da editora, com Gunn lidando com o lado criativo dos projetos e Safran, com a parte de produção e negócios.
Mas quais são realmente os impactos desta mudança para a DC e, consequentemente, para a parceria entre Gunn e a Marvel? Entenda a seguir:
A DANÇA DAS CADEIRAS
A contratação da dupla para a posição de executivos é parte de um momento de transição dentro do grupo Warner Bros. Discovery, e não só do ponto de vista criativo. A busca por pessoas que atuem como o presidente do Marvel Studios, Kevin Feige, se dá dentro de um contexto de remodelação e, portanto, reconfiguração de estratégias, que passam pela predileção a franquias e o fim da HBO Max.
Dentro deste contexto é natural que ocorra uma dança das cadeiras, seja pela própria natureza de uma fusão — com duas pessoas/equipes fazendo a mesma função, é preciso fazer escolhas —, seja por discordâncias. O último caso parece ter sido o de Walter Hamada, o presidente do então DC Films desde 2018. Ao que tudo indica, a decisão de cancelar Batgirl por uma questão de gastos, mesmo o filme já estando em edição, gerou tensão com Zaslav. Além disso, apesar dos bons resultados, Hamada não se encaixava no perfil de um Kevin Feige que o novo CEO procurava. Assim, depois de uma busca intensa, Zaslav dividiu o posto entre duas pessoas: James Gunn e Peter Safran, ambos profissionais experientes no universo de heróis, fãs declarados e com expertises evidentes — um do lado criativo e o outro, do lado financeiro.
ADEUS, MARVEL!*
James Gunn/Instagram/Reprodução
O novo acordo de Gunn com a DC é de exclusividade, e ficará válido durante quatro anos, segundo fontes do Hollywood Reporter. Isso significa que Guardiões da Galáxia Vol. 3 será o último projeto do diretor na Marvel, ao menos por um tempo. Contudo, Gunn rapidamente veio a público esclarecer que sua ida agora definitiva para a concorrência não é sinal de rivalidade com a Casa das Ideias. No Twitter, ele disse:
"Não só amo o Kevin [Feige, presidente do Marvel Studios], como ele foi a primeira pessoa a quem contei que fiz o acordo com a DC (John Cena foi a segunda pessoa). Ao contrário da crença popular, um dólar a menos para a Marvel não é um dólar a mais para a DC. DC e Marvel têm o objetivo comum de manter a experiência de ir ao cinema vibrante e viva!"
O próprio Feige parabenizou Gunn pela nova conquista — não sem antes lembrá-lo das suas responsabilidades com o MCU. "Ele tem muito trabalho a fazer para a Marvel entre agora e maio, que ele está bem ciente. Mas depois disso, serei o primeiro da fila para ver qualquer coisa que ele faça", afirmou ao Deadline.
Agora, para quem interpretou esse clima cordial como um indício de um possível crossover de universos compartilhados, calma: ambos os estúdios têm preocupações suficientes no curto prazo para pensar em um evento dessa magnitude — a Marvel com a construção da Saga do Multiverso, e a DC restabelecendo seus objetivos. Portanto, maneire a sua expectativa.
*E COMO CHEGOU NISSO
Warner Bros./Divulgação
Vale lembrar que a primeira colaboração de Gunn com a DC se deu depois que a Marvel o demitiu em razão do ressurgimento de tweets ofensivos que ele fizera anos antes — o que, mais tarde, se revelou uma ação coordenada de simpatizantes do governo do então presidente estadunidense Donald Trump, após o diretor criticá-lo nas suas redes sociais. Na ocasião, Gunn pediu desculpas públicas pelos seus comentários e disse entender a decisão da Disney de tirá-lo do comando de Guardiões da Galáxia Vol. 3; leia abaixo:
“Minhas palavras de quase 10 anos atrás foram, na época, tentativas completamente falhas e infelizes de ser provocativo. Me arrependo delas há anos — não só porque eram estúpidas, nada engraçadas, amplamente insensíveis e certamente não provocativas como eu esperava, mas também porque elas não refletem a pessoa que sou hoje ou tenho sido há um tempo. Independentemente de quanto tempo passou, entendo e aceito a decisão de negócios que foi tomada hoje. Mesmo tantos anos depois, eu assumo toda responsabilidade pela maneira como eu me portei na época. Tudo o que posso fazer agora, além de oferecer o meu mais sincero arrependimento, é ser o melhor ser humano que posso: aceitar, entender, me comprometer com a igualdade, com declarações públicas mais empáticas e com minhas obrigações com nosso discurso público. Para todos dentro da indústria e além, de novo ofereço minhas mais profundas desculpas".
A DC viu sua demissão como uma oportunidade e, 72 horas depois da dispensa na Disney, já negociava com Gunn projetos em potencial. Oferecendo seu catálogo de personagens, sem nenhuma restrição, as duas partes chegaram ao acordo que levou O Esquadrão Suicida novamente para os cinemas, com uma nova formação e, dessa vez, para maiores de 18 anos. O sucesso do filme abriu as portas para que Gunn criasse Pacificador,o derivado inusitado focado no até então odiável personagem de John Cena, e mais recentemente auxiliasse no desenvolvimento da série solo de Amanda Waller com Viola Davis. É evidente que Gunn conquistou a confiança dos executivos, já que agora supervisionará todo o universo da DC nos cinemas.
BEM-VINDO AO DCU
DC Films/Reprodução
Esqueça o chamado DCEU. A nova fase do universo compartilhado passa a se chamar DCU, concentrando os esforços ao redor de histórias no cinema, na TV e em animações sobre "Superman, Batman, Mulher-Maravilha, Aquaman, Arlequina e o restante do catálogo de personagens da DC", como os próprios Gunn e Safran disseram, em nota oficial. Por enquanto, pouco se sabe sobre o que a dupla planeja para dar mais unidade ao universo compartilhado —nem como isso pode afetar, por exemplo, outras adaptações da editora, como o Arrowverse na CWe séries bem-sucedidas, como Harley Quinn. No entanto, uma coisa é certa: os executivos precisarão ter cuidado com o controle de custos, uma preocupação constante desde a fusão entre Warner Bros. e Discovery.
Não se pode ignorar também que, após decisões polêmicas do Zaslav, Gunn e Safran terão o desafio de reconquistar a confiança dos cineastas sobre uma eventual parceria com o DC Studios. Porque, mais do que controle criativo, o que está em jogo desde o cancelamento de Batgirl e Super Gêmeos, dois longas anteriormente planejados para o HBO Max, é a certeza de que até produções bem encaminhadas verão a luz do dia.
Logo, para ser bem-sucedido, o novo DCU precisa se sustentar em três pilares: coesão, custos e credibilidade.
OS LIMITES DO REINO
Coringa/Warner Bros./Reprodução
Embora Gunn e Safran sejam tidos como os "Kevin Feige da DC", os projetos da editora têm algumas particularidades, a começar pelo fato de que coexistem diferentes universos criativos. Por isso, Ben Affleck pode reaparecer como Batman no novo Aquaman ao mesmo tempo em que, em uma Gotham à parte deste mundo, Robert Pattinson enfrenta criminosos de todo tipo. Nesse sentido, mesmo que Zaslav tenha a intenção de emular o que Feige criou com o antigo CEO da Disney Bob Iger —e que mantém agora com Alan Horn —, dando mais coesão às criações da DC, nem tudo vai parar debaixo do guarda-chuva da dupla.
O exemplo mais explícito disso é Joker: Folie a Deux, sequência de Coringa estrelada por Joaquin Phoenix e Lady Gaga. A produção, cujo roteiro já foi concluído e aprovado, será supervisionada por Michael De Luca e Pamela Abdy, os novos chefes do grupo de filmes Warner Bros. Afinal, não apenas o projeto já está em pré-produção desde junho — tendo recebido o sinal verde dos próprios De Luca e Abdy —, como ele não será integrado ao multiverso da DC. Nesse sentido, é importante notar que a Arlequina de Margot Robbie não deve cruzar o caminho do Coringa de Phoenix, mas isso não necessariamente impede que Gunn e Safran trabalhem com uma outra versão do vilão — ou, ainda, que Todd Phillips desenvolva outra versão da antagonista.
Gunn e Safran também não devem se meter em The Flash e Aquaman e o Reino Perdido, produções que, se já não estão concluídas, estão próximas disso. Até porque ambas têm datas de estreia iminentes, com a primeira chegando em 23 de junho e a segunda, em 25 de dezembro de 2023. Ainda assim, é inevitável que os co-CEOs herdem linhas narrativas e, por que não, eventuais incongruências destes filmes e tenham que justificá-las no futuro.
Vale mencionar, ainda, Shazam! Fúria dos Deuses, cujo lançamento está marcado para março do ano que vem. Considerando que a produtora de Safran já é uma das responsáveis pelo filme, uma eventual correção de curso parece mais simples, se é que será necessário. Afinal, ainda está para se revelar a “visão poderosa” da qual Zaslav se gaba, e é possível que seja uma continuidade do que ambos já vinham fazendo. Em outras palavras, Shazam! pode ser mais modelo/referência do que um dos pontos fora da curva do universo em construção.
Batman/Warner Bros/Reprodução
O Battinson, por sua vez, tem destino incerto. Considerando que o diretor Matt Reeves ainda não entregou o roteiro da continuação e, consequentemente, que sua estreia deva ficar, na melhor das hipóteses, para 2025, ainda há chances de trabalhá-lo dentro da estrutura que planejam para a DC Studios. Há, porém, um complicador: de forma semelhante ao que Gunn fez com seu Esquadrão Suicida, Reeves também trabalha na expansão de Gotham em séries de TV, como The Penguin e Arkham, e até em filmes. Segundo o Hollywood Reporter — antes do anúncio da nova direção do estúdio, vale dizer —, o cineasta estava se reunindo com diferentes roteiristas e diretores para esboçar produções focadas em vilões como o Espantalho, o Professor Porko e o Cara-de-Barro.
Nesse caso, embora seja possível uma adequação para conectar estes dois universos coexistentes, a questão que fica é: vale a pena? O clima soturno de Batman foi um grande sucesso, somando US$ 770,8 milhões nas bilheterias ao redor do mundo e quebrando recordes de audiência na HBO Max, e não é difícil de entender o porquê. Além de trazer um novo olhar para o Homem-Morcego, um personagem adorado há décadas nos cinemas, Reeves supriu uma lacuna no mercado deixada pelo fim da passagem de Zack Snyder na DC, isto é, a vontade de histórias mais sérias e pé no chão, algo que a Marvel não oferece há tempos — em partes, pelo sucesso do Guardiões da Galáxia. Logo, seria mais estratégico manter seu diferencial em vez de uniformizar tudo.
Assim, o DC Studios poderia seguir uma lógica que foi especulada na época do lançamento de Coringa: fazer filmes com uma pegada mais quadrinhos — isto é, mergulhando nos absurdos e bobeiras do multiverso e, assim, tendo em mãos retcons justificados em si mesmos — e, acompanhado de outro selo, produções com um quê de graphic novels.
É evidente que resta saber se Gunn e Safran realmente vão arbitrar sobre isso. Porque eles ainda têm em mãos um possível terceiro Mulher-Maravilha, a já especulada sequência de The Flash, um novo Adão Negro, a segunda temporada de Pacificador e a série de Amanda Waller, para ficar só nos live-actions com informações mais concretas. O ator Henry Cavill também já demonstrou desejo de sentar com Gunn e discutir o futuro do Superman, agora que foi reintegrado ao universo. E, ainda assim, há outros dois projetos com o herói em desenvolvimento: a minissérie Val Zod, encabeçada por Michael B. Jordan, e o filme produzido por J.J. Abrams. E sequer falamos sobre Blue Beetle…