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Atual HQ do Doutor Estranho tem tudo o que o filme poderia ter sido

Do fan service ao senso de ameaça e sacrifício, fase de Jason Aaron e Chris Bachalo acerta a mão

18.11.2016, às 16H31.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H36

Quando a Marvel Comics decide zerar as numerações de suas séries, como tem feito com regularidade a cada dois anos nesta década, é raro que as HQs passem por um recomeço de fato, com histórias de origens recontadas e premissas reapresentadas. Como veio às vésperas do longa-metragem do Doutor Estranho e buscava leitores novatos, a série do Mago Supremo por Jason Aaron e Chris Bachalo é uma exceção - e realiza bem várias coisas que o filme poderia ter feito melhor.

A começar pelo fan service: Aaron não reconta a origem de Stephen Strange seguindo a linearidade consagrada - acidente de carro, treinamento no Himalaia, transformação em mago - e sim homenageia a primeira aparição do personagem nos quadrinhos, em 1963, em que o Doutor Estranho já exerce seu ofício rotineiramente, entrando nas mentes dos novaiorquinos para livrá-los de seus demônios, como um terapeuta que atende a domicílio e que enxerga parasitas monstruosos de outras dimensões ao invés de traumas freudianos normais.

As ressalvas feitas aqui no Omelete ao filme de Scott Derrickson, como a incapacidade de se comprometer com uma gravidade que realmente transmita a intenção do longa de lidar com o tema da mortalidade, são supridas nessa fase de Aaron e Bachalo, tanto nas primeiras edições publicadas no fim de 2015 quanto no arco "Last Days of Magic" (edições #6 a #10), que vinha sendo preparado desde o início da série. Na trama, um vilão de poder científico que perdeu seus pais para um culto satanista assume para si a missão vingativa de acabar com a magia no universo, e encontra em Strange um antagonista moral, que está passando pessoalmente por uma jornada de sacrifício (pontuada por inserções cômicas de bizarria e humor autodepreciativo, como as refeições de Wong, que não soam deslocadas como as piadas pop do filme).

A maneira que os criadores encontram para reapresentar a mitologia do personagem de forma didática, sem banalizar sua narrativa nem deixar esfriar o desenrolar da trama, é bastante interessante. O uso de cores é eficiente para diferenciar a vida normal e o plano espiritual, enquanto os desenhos de Bachalo são arrojados e angulosos o suficiente para nos transmitir o peso e o custo do uso da magia sobre a saúde de Strange. Ao mesmo tempo, Jason Aaron coloca uma dúzia de coadjuvantes em cena (o esforço para conter a ameaça do Empirikul mobiliza a magia no planeta todo) não apenas para tornar a epopeia mais grandiosa mas também para reorganizar o mapa de personagens do mundo mágico da Marvel.

Se o leitor tiver que escolher apenas uma edição para ter uma ideia do que Aaron e Bachalo realizam, o número #6 é exemplar. Consegue transmitir a gravidade da história e ao mesmo tempo as incontáveis possibilidades de Strange como mago - e o que torna a HQ dramática é justamente perceber que o Doutor Estranho, um dos super-heróis mais poderosos da Marvel, pode se ver incapacidade diante de uma situação em que perde seu chão, o mundo da magia. É o combo ideal: aprendemos sobre o personagem, sobre as regras que regem sua ficção, adquirimos uma ótima noção do que ele pode fazer e ao mesmo tempo aprendemos a nos identificar com seu drama.

De resto, o arco "Last Days of Magic" tem algo a oferecer ao futuro do Doutor Estranho no cinema. O Empirikul tem um perfil parecido com o que o Barão Mordo pode mostrar numa eventual continuação do longa (o rancor contra o uso da magia, em primeiro lugar) e a HQ oferece um vislumbre de facetas mais sinistras do mundo mágico, como os discípulos cobaias e o "monstro de dor". Aaron e Bachalo criam até agora nessa fase uma mistura muito bem equilibrada do que poderia ser o casamento entre uma história tradicional de super-heróis da Marvel com uma HQ mais densa sobre magia da Vertigo. E, principalmente, provam que não é preciso abrir mão da diversão e da leveza para contar uma história mais vigorosa de heroísmo e sacrifício.