É talvez simbólico que o único prêmio vencido pelos filmes que representavam o Brasil no Festival de Cannes 2024 tenha sido o de Melhor Ator Revelação para Ricardo Teodoro, astro do filme Baby, exibido na mostra paralela Semana da Crítica. Celebrado pelo seu primeiro grande papel no cinema (em 2021, ele estava fazendo uma ponta como “Segurança de Construtora” na série Cidade Invisível, da Netflix), Teodoro é um bom símbolo do cinema brasileiro cheio de potencial, mas ainda em reconstrução, que aportou na Croisette em 2024 após anos de participações inexpressivas.
“Todos os setores da sociedade brasileira que dependem da estrutura estatal estão em reconstrução nesse momento, e é uma reconstrução lenta porque só agora estamos tendo noção do estrago”, disse ao Omelete o cineasta Marcelo Caetano, responsável por Baby. A alusão aos efeitos ainda sentidos do período “tenebroso” (adjetivo da atriz Bruna Linzmeyer, que também aparece no longa de Caetano) do governo Jair Bolsonaro, que desmontou os investimentos públicos na cultura brasileira, é uma constante quando se conversa sobre o cinema nacional em Cannes.
“A construção da nossa cultura foi interrompida de forma muito proposital e precisa, porque a cultura é muito poderosa. Mudar as pessoas através do afeto só é possível através da cultura, dos filmes, da música... foi muito triste ver nossa cultura passar por esse desmonte”, comentou Linzmeyer ao Omelete. “Isso sem nem falar dos trabalhadores da cultura que enfrentaram uma dificuldade financeira muito grande”.
A atriz apontou que o retorno do Brasil ao circuito de festivais de cinema internacionais se deve à retomada, no governo Lula, de políticas públicas como o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e da restituição do Conselho Superior de Cinema. “Ainda tem muito a se trabalhar”, acrescentou. “Ainda precisamos distribuir esse dinheiro melhor fora do eixo Rio-São Paulo, em pequenas produtoras, em pessoas que não estão acostumadas a recebê-lo. Precisa haver uma distribuição mais diversa e mais eficiente, mas é um alívio saber que já tem gente trabalhando nesse sentido no país”.
A equipe de Motel Destino durante première em Cannes 2024 (Christophe SIMON / AFP)
Bruna e Caetano frisaram, no entanto, que emplacar cinco títulos na seleção de Cannes 2024, mesmo nesse momento de retomada, é um testemunho da força do cinema nacional. Além de Baby, o Brasil levou a Cannes os longas Motel Destino (na competição principal) e A Queda do Céu (na Quinzena dos Cineastas), e os curtas Amarela (também na competição pela Palma) e A Menina e o Pote (também na Semana da Crítica). Thierry Fremaux, delegado-geral e diretor artístico do festival, celebrou essa representação robusta quando disse ao Omelete que “o cinema brasileiro sempre teve algo de especial”.
“Eu não sei exatamente o que é o nosso molho, mas ele existe mesmo”, brincou Linzmeyer em resposta. “Quando tenho a oportunidade de apresentar os nossos filmes fora, percebo que o que é brasileiro toca as pessoas do mundo todo. É inexplicável, mas dá para sentir isso na forma como as pessoas falam dos filmes. Algo no nosso caos, na nossa alegria, no nosso medo, em tudo que a gente atravessou de ruim mas conseguiu resistir. Isso está na tela, tudo que a gente vive nas ruas do Brasil vai parar lá”.
De olho no "marché"
Espaço do Cinema do Brasil no Marché du Film, em Cannes 2024 (Reprodução/Instagram)
Enquanto a exibição dos filmes selecionados para o Festival de Cannes 2024 atrai a atenção da imprensa e do público, o “fervo” do evento acontece mesmo no subsolo - literalmente, porque é no porão do Palácio dos Festivais que se localiza o Marché du Film (em tradução literal, Mercado do Filme), onde produtoras, estúdios e instituições governamentais se encontram para comprar e vender projetos, acertar acordos de distribuição e firmar parcerias de coprodução entre países. São mais de cinco mil pessoas espalhadas por estandes que representam vários cantos do mundo, e o Brasil não ficou de fora da edição de 2024.
O Omelete conversou com André Sturm, cineasta e produtor que também atua como presidente da instituição Cinema do Brasil, que marcou presença no Marché deste ano com um grande espaço aberto para promover vários projetos do cinema nacional. Criado a 16 anos, o Cinema do Brasil não é uma produtora de filmes ou um estúdio, mas sim uma facilitadora de negociações: “O que fazemos é criar um ambiente de negócios para os nossos filmes, montando um grande estande no Marché e servindo como a embaixada do cinema nacional em Cannes”.
As duas semanas do festival foram movimentadas por lá, com palestras de grandes nomes da indústria (incluindo Karim Aïnouz, diretor de Motel Destino), reuniões com organizações de outros países (Espanha, Argentina, Portugal, etc) para negociar coproduções e incontáveis oportunidades de negócios para os filmes brasileiros que já estão em processo de realização. Foram mais de 50 empresas que passaram por ali.
“A ideia é que essas empresas possam conversar entre si e fechar acordos para os filmes que estarão em Cannes no ano que vem - ou daqui a dois, três anos”, explicou Strum. “É assim que a roda vai girando, né? Você vai para um evento, conversa, se reencontra em outro, mantém o contato, até fechar um acordo e partir para as filmagens. Daqui a três anos você vê o resultado do que nasceu ali no Marché”.
Esse foi o pique de aceno ao futuro que ditou a participação brasileira em Cannes 2024. “A gente vinha em um crescendo, em 2019 tivemos filmes brasileiros premiados em Cannes, Veneza e Berlim. Isso nunca tinha acontecido antes!”, lembrou Strum. “Mas tudo o que veio depois fez a gente dar passos para trás, e só agora é que tenho visto um clima mais positivo na indústria. Tem que aproveitar esse clima para ampliar a nossa presença, ampliar os nossos encontros, seja nos festivais ou no circuito comercial”.
Já Marcelo Caetano sente que sua responsabilidade, como cineasta, é reconquistar o público que se afastou do cinema nacional: “Gosto muito de estar com as pessoas, sinto falta da sala de cinema cheia, quero trazer de volta o pessoal que teve que debandar para outros lugares. O baque que tivemos nos últimos anos foi em todo o audiovisual, sim, mas no cinema em si foi mais forte, bem mais do que na TV ou no streaming. Agora, estamos correndo atrás”