Homenageada com a Palma de Ouro honorária na cerimônia de abertura do Festival de Cannes 2024, que aconteceu ontem (14), Meryl Streep retornou à Croisette hoje (15) para um papo esclarecedor com o jornalista Didier Allouch, em evento batizado de “Encontro com Meryl Streep” pela organização do festival. O Omelete acompanhou a entrevista, que perpassou toda a carreira da estrela, se concentrando especialmente nos subtextos feministas de alguns de seus filmes mais celebrados.
Quando o assunto foi Kramer vs. Kramer (1979), por exemplo, Streep foi um pouco mais fundo do que de costume na famosa lenda urbana hollywoodiana sobre ela ter escrito o seu próprio discurso para a antológica cena do tribunal no terceiro ato do drama: “[Robert] Benton [diretor do filme] nos perguntou um dia no set: por que ela foi embora, por que ela abandonou marido? E Dustin [Hoffman, parceiro de cena de Streep no filme] disse: ‘bom, eu sei por quê’. Fquei surpresa, então nós começamos a discutir sobre isso entre nós. Benton disse que precisava de um discurso para a minha personagem na cena do tribunal, então eu, ele e Dustin fomos para os nossos camarins e escrevemos versões separadas do discurso. Depois, juntamos os três e votamos em qual era o melhor. Eu venci”.
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Curiosamente, Streep disse que algo semelhante aconteceu no set de O Franco-Atirador (1978), outro filme que ajudou a estabelecer seu nome em Hollywood: “Eu me lembro de Michael [Cimino, diretor] dizendo: ‘Não sei o que essa garota falaria quando está no mercado, você pode escrever um diálogo para essa cena?’. E eu escrevi. Isso não é comum, aliás - acabei de perceber que falei de dois filmes em que escrevi meus próprios diálogos, mas não é como se acontecesse sempre. Nesses dois filmes, bem no começo da minha carreira, aconteceu”.
De uma forma ou de outra, essa noção de Streep como autora de suas próprias personagens, especialmente no contexto de uma Hollywood que não dava (e ainda não dá) tanto espaço para mulheres se construírem dessa forma, foi recorrente no evento. Em Kramer, o livro original de Avery Corman foi definido pela estrela como “uma obra de raiva e vingança contra o movimento feminista que tirou as mulheres ‘do seu lugar natural’ como mães e donas de casa”.
“E isso não é nada que eu já não tenha dito para ele!”, frisou a estrela. “Eu acredito muito que todo filme é um filme do seu momento. Mesmo que ele se passe em outro tempo, ele é do momento em que foi feito. Ou isso, ou ele só foi feito para ganhar dinheiro, o que é outra coisa. Mas os filmes ‘sérios’, os projetos passionais, os que são difíceis de financiar porque provocam as pessoas… esses são do seu tempo. Kramer foi um filme que se encontrou com o seu momento de forma intensa, eu acho, um momento em que o feminismo e a reação a esse feminismo estavam em pauta”.
E Streep acrescentou que, quando se trata de elevar mulheres à posição de protagonistas de suas próprias histórias, o entrave não é só dinheiro: “Os filmes são uma projeção dos sonhos das pessoas - e até os executivos, o pessoal do lado financeiro do cinema, têm sonhos. Se eles dão a luz verde para alguma coisa, em alguma dimensão estão vivendo sua fantasia, e eu acho que para muitos homens é difícil enxergar essa fantasia em protagonistas femininas. É muito, muito, muito mais difícil para um homem se colocar no lugar de uma mulher do que é para uma mulher se colocar no lugar de um homem”.
“Sabe quando foi a primeira vez em toda a minha carreira em que um homem veio até mim e disse: ‘Uau, você expressou algo que eu já senti naquele filme’? Foi em O Diabo Veste Prada. E foi mais de um homem!”, brincou ainda a estretla. “Eles chegavam e me diziam que entendiam como era ser a pessoa que toma decisões, que é mal compreendida, e eu achei isso fascinante. O homem que assistir O Franco-Atirador não vai se identificar com a minha personagem! Mas eu consigo me identificar com o que sentem os personagens de Walken, De Niro, e todos os outros garotos. Acho que nós, mulheres, falamos todas as línguas, mas é difícil para os homens falar a nossa. Entende o que eu digo?”.
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A premiada atriz garantiu, no entanto, que “muita coisa mudou para melhor” desde que ela começou na indústria, quase meio século atrás. “As maiores estrelas de cinema do mundo são mulheres neste momento, se você não contar o Tom Cruise”, comentou. “Agora, vemos mais protagonistas femininas porque há mais mulheres produzindo, e mulheres produzindo para si mesmas! Eu sempre me admiro com as pessoas que fazem isso. Reese [Witherspoon], Nicole [Kidman], Natalie Portman. Tudo o que eu produzi na minha vida foram bebês. Mas, para ser justa, eu nunca quis produzir filmes, porque sou muito contra atender ao telefone depois das sete da noite”.
O Festival de Cannes 2024 acontece entre 14 e 25 de maio, exibindo filmes aguardados como Furiosa: Uma Saga Mad Max e Megalopolis, de Francis Ford Coppola, entre muitos outros. Fique de olho no Omelete para a cobertura completa.