Trabalhos inéditos de Sofia Coppola, Michael Haneke e David Lynch prometem agitar o 70º Festival de Cannes (17 a 29 de maio), que se abriu a estéticas de gêneros, à linguagem dos quadrinhos, à Era de Ouro da televisão, ao poderio da NetFlix e até ao carisma de Adam Sandler. Na escolha de sua atração de abertura, a direção artística da mostra cannoise esnobou superproduções (esperava-se a presença do novo Piratas do Caribe ou de Valerian, de Luc Besson, nesse posto), a fim de apostar na prata da casa: será tarefa para o francês Arnaud Desplechin inaugurar o evento com Les Fantômes d’Ismäel., uma história de amor protagonizada por Charlotte Gainsbourg, Mathieu Almaric, Marion Cotillard e Louis Garrel. Não houve espaço para o Brasil e nem para latinos da América Hispânica na briga pela Palma de Ouro. E a resposta do curador Thierry Frémaux para a nossa ausência por lá foi a das mais secas: “É questão da conjuntura”.
Mas não faltaram crias da casa, como Yorgos Lanthimos, aclamado e premiado por lá em 2015 com O Lagosta, que regressa agora com The Killing of a Sacred Dear. Também foi Cannes que consagrou Sofia Coppola mundialmente com As Virgens Suicidas, lá em 1999. E ela volta agora com The Beguilded, traduzido aqui como O Enganado. Num clima de sensualidade, com ecos de western, esta produção põe Colin Farrell em meio a uma casa de mulheres que desejam algo mais do que seu amor. Entre elas estão Kirsten Dunst, Elle Fanning e Nicole Kidman.
Mais aguardado do que o regresso de Sofia só Redoutable, filme novo do diretor de O Artista (2011), o francês Michel Hazanavicius, sobre a juventude de Jean-Luc Godard, gênio da direção por trás de cults como Acossado (1960). Luc Garrel vive Godard na produção que briga pela Palma embalado a cinefilia. Entre seus concorrentes está Good Time, dos irmãos nova-iorquinos Ben e Joshua Safdie, com Robert Pattinson – que, segundo olheiros de Cannes, tem tudo para ganhar o prêmio de melhor ator por um desempenho memorável.
Ganhador de duas Palmas, em 2009 com A Fita Branca, e em 2012, com Amor, Haneke volta a Cannes com fôlego para se tornar o único diretor do mundo a receber o prêmio maior do festival por três vezes com Happy-End. Concorrem com ele cineastas de respeito como a escocesa Lynne Ramsai, com o thriller You Were Never Really Here; a japonesa Naomi Kawase com Radiance; o alemão Fatih Akin, assinando o esperado In The Fade; o francês François Ozon, com o suspense L’Amant Double; o ucraniano Sergey Loznitsa, com A Gentle Creature, baseado na prosa de Fiódor Dostoiévski; e um camarada deste, o russo Andrey Zvyagintsev, com Loveless.
Ainda sobrou espaço em concurso para o universo infanto-juvenil em Cannes, com Wonderstruck, de Todd Haynes (Carol), um projeto da Amazon TV. Sua maior rival, a NetFlix, entra em campo com Okja, do coreano Bong Joon-ho (O Hospedeiro), aventura fantástica com Paul Dano e Tilda Swinton, e com um projeto estrelado pelo sempre controverso Adam Sandler, outrora o comediante de maior sucesso de bilheteria de Hollywood (entre 1998 e 2011). Ele divide com Ben Stiller e Dustin Hoffman o protagonismo do novo filme de Noah Baumbach (Frances Ha): The Meyrowitz Stories.
Uma das mostras paralelas mais disputadas de Cannes, a seção Um Certain Regard vem recheada de exercícios narrativos dirigidos por atores, como o já citado francês Mathieu Almaric (com Barbara, la Chanteuse) e o italiano Sergio Castelitto (com Fortunata). Entraram ainda nesse menu trabalhos inéditos de Kyioshi Kurosawa (La Disparition) e Michel Franco (Las Hijas de Abril), além de uma incursão de Taylor Sheridan (roteirista de A Qualquer Custo e Sicário) como realizador: Wind River, com Jon Bernthal, o Justiceiro da série Demolidor.
As HQs terão um lugar garantido em Cannes, levadas pelas mãos de dois mestres da direção autoral. O japonês Takashi Miike assina a adaptação do mangá Blade of the Imortal, de Hiroaki Samura. Já John Cameron Mitchell transformou em longa o exercício dos gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon com Neil Gaiman: How to Talk to Girls at Parties, com Nicole Kidman.
Como esperado, Cannes exibirá episódios da aguardada nova temporada de Twin Peaks, celebrando o regresso de David Lynch ao audiovisual. E tem mais... Cerca de 11 anos depois da conquista do prêmio de melhor diretor em Cannes por Babel (2006), o mexicano Alejandro González Iñárritu estará de volta à Croisette com uma espécie de “filme-instalação” de realidade virtual: Carne y Arena. O evento exibe ainda 24 frames, de Abbas Kiarostami, numa homenagem póstuma ao mestre iraniano, morto em 2016. Além disso, o festival projeta, na íntegra, a série Top of the Lake, da neozelandesa Jane Campion, a única mulher a ganhar a Palma de Ouro, em 1993, com O Piano. O menu ainda resgata o ás francês do real Raymond Depardon com um novo doc: Deux Jours. A atriz britânica Vanessa Redgrave também fez um documentário como diretora, cujo tema é a condição dos refugiados.
Diretor de cults como Tudo Sobre Minha Mãe (1999), o espanhol Pedro Almodóvar será o presidente do júri de longas, enquanto o cineasta romeno Cristian Mungiu cuida dos curtas, entre eles o brasileiro Vazio do Lado de Fora, de Eduardo Brandão Pinto. O pernambucano Kleber Mendonça Filho, que dirigiu Aquarius, vai presidir o júri da Semana da Crítica, que anuncia semana que vem suas atrações, assim como fará a Quinzena dos Realizadores, que concederá um prêmio especial, a Carroça de Ouro, ao diretor alemão Werner Herzog.