Mestre em construir tensão ao retratar as moléstias morais da Europa, Michael Haneke pode sair do 70º Festival de Cannes com um recorde: a julgar pela boa recepção a seu Happy End, o cineasta austríaco pode ser o primeiro diretor na história a ganhar três Palmas de Ouro. Ele, que conquistou o troféu antes em 2009 com A Fita Branca e em 2012 com Amor, tem fortes chances de ganhar de novo com seu trabalho mais recente, que sufocou a Croisette ao usar a aristocrática família francesa, os Laurent, como símbolo das patologias europeias.
"Refleti sobre formas de fazer chegar à cabeça e ao coração da plateia questões sobre imigração e sobre a situação dos refugiados que não saberia como explicar em palavras. Na reflexão cheguei a este filme, que é fruto da troca entre meus parceiros, de elenco e técnica", diz Haneke, evitando respostas que definam sua análise (nilista) do mundo. "Não penso meu trabalho de maneira analítica. Eu vivo a vida com olhos abertos e isso me faz perceber questões do nosso tempo. Famílias como a Laurent estão por aí".
Em Happy End, a lenda viva do cinema francês, Jean-Louis Trintignant, é Georges, o patriarca de um clã que tem Isabelle Huppert e Mathieu Kassovitz entre seus parentes. Com uma direção cirúrgica, pautada por um clima de tensão crescente, Haneke cria no filme a crônica da atomização da burguesia europeia, a partir de uma família de alta classe média em erosão afetiva e financeira, entre tragédias e processos judiciais. "Este é um filme sobre autismos", diz Haneke. "Temos informação demais e isso nubla nosso senso do Real".
Já no início do filme, brota uma sequência sombria: uma menina filma num i-Phone um jogo cruel com um hamster alimentado com comprimidos de dormir. É uma metáfora para a opressão dos pobres, que parte de um clã com a própria morte anunciada. "Nos últimos 20 anos, o mundo mudou e a mídia traduziu essas mudanças em distintos suportes e hábitos, como vemos nas redes sociais. E um dos temas do filme são as transformações", explica Haneke. "Cada roteiro meu segue um sistema narrativo diferente. Mas há uma questão em comum: não me guio por intrigas, mas pelo clima de provocação em que posso envolver o espectador".
Ganhadora do Globo de Ouro de melhor atriz dramática do ano por Elle, pelo qual também foi indicada ao Oscar, Isabelle Huppert vive em Happy End a filha de Georges, responsável por limpar as sujeiras em torno da família. Ela fez com Haneke cults como A Professora de Piano (2001) e presidiu o júri de Cannes pelo qual ele foi premiado com A Fita Branca. "Precisão é a palavra que define Haneke, porque é dela que vem nossa liberdade", diz a atriz. "Ele tem um controle pleno do quadro".
Além de Happy End, dois filmes carregam uma aura de favoritismo em Cannes: o francês 120 Batimentos Por Minuto, de Robin Pompillo, sobre o ativismo em prol dos soropositivos, e a o sueco The Square, de Ruben Ostlúnd, sobre o mundo das artes plásticas.