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Sem Coração, curtas yanomamis e mais formam delegação brasileira em Veneza

Filmes brasileiros de realidade aumentada e virtual também marcaram presença

09.09.2023, às 16H00.

O Brasil faz uma participação discreta, mas poderosa, no 80º Festival de Veneza, com Sem Coração, de Nara Normande e Tião, na mostra Horizontes, três curtas yanomami em evento especial da Giornate degli Autori e três produções na seção Venice Immersive, com trabalhos de realidade virtual e aumentada. Além, claro, da ponta de Sophie Charlotte em O Assassino, de David Fincher, e o papel de Gabriel Leone em Ferrari, de Michael Mann

Sem Coração é um longa-metragem no mesmo universo do curta de mesmo nome, lançado por Nara Normande e Tião em 2014. O longa demorou a sair por diversas razões, do polimento do roteiro a questões de captação de recursos e o congelamento do Suporte Automático de Desempenho Comercial para a produtora Cinemascópio, de Emilie Lesclaux e Kleber Mendonça Filho, durante o governo de Jair Bolsonaro. 

Tanto no curta quanto no longa, a personagem Sem Coração, interpretada por Eduarda Samara, é uma figura que fascina o outro protagonista – aqui, Tamara (Maya de Vicq), uma adolescente que se prepara para deixar a praia de Guaxuma, em Alagoas, e se mudar para Brasília. 

“Foi uma mudança muito natural. Eu tinha feito o curta Guaxuma, que é muito autobiográfico e inspirou a história da Tamara. Eu também saí da Guaxuma e fui não para Brasília, mas para Recife”, disse Normande em entrevista ao Omelete. A casa de Tamara no filme é a mesma onde Nara passou a infância. 

O filme se passa na década de 1990 por isso, mas não só. “É uma época muito especial, porque foi o espaço entre o final da ditadura e a retomada fascista no Brasil”, disse Tião. Nara Normande completou: “Queríamos retratar as sementes do que vivemos hoje no Brasil”. 

Tamara passa seus dias com os amigos, uma turma diversa em tons de pele, origens, classes sociais e orientações sexuais. Sem Coração fica um pouco à margem da turma porque é filha de pescador e precisa trabalhar para ajudar o pai. Tamara está descobrindo a sua sexualidade, e Binho (Kaique Brito) sofre preconceito por ser gay. “Eu sou lésbica, a descoberta da Tamara tem muito a ver com isso”, disse a diretora. “Alagoas é muito conservador, e a gente queria retratar isso. A violência também. Dois atores do curta foram assassinados.”

O lugar é muito importante em Sem Coração e há especificidades que dão dimensão à história, que se desenvolve com calma e delicadeza. Por vezes, a natureza aparece de maneira fantástica. “O lugar é tão fantástico que às vezes não parece de verdade”, explicou Tião. Para Nara Normande, era preciso trazer um pouco de poesia para equilibrar com a realidade. 

Essa mistura de poesia e realidade também está presente nos curtas dirigidos por yanomamis que fizeram parte do evento Os Olhos da Floresta, dentro da mostra paralela Giornate degli Autori, em parceria com a Fondation Cartier e a Isola Edipo. Mãri Hi – A Árvore do Sonho, de Morzaniel Ɨramari, ganhou o Prêmio Especial do Júri e o Kikito de melhor fotografia de curta-metragem no Festival de Gramado, em agosto. Antes, foi eleito o melhor curta documentário nacional no Festival É Tudo Verdade, o que o qualifica para o Oscar na categoria. 

O filme, que conta com a participação do xamã e escritor Davi Kopenawa Yanomami, fala da árvore que, ao florescer, faz surgir os sonhos. Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando, de Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami e Roseane Yariana Yanomami, mostra uma mulher observando a feitura do Yãkoana, que alimenta os espíritos e permite aos xamãs entrarem em contato com eles. Já Yuri U Xëatima Thë – A Pesca Com Timbó, dirigido pelos mesmos três cineastas, trata da pescaria feita com o cipó que atordoa os peixes. 

A importância de estar aqui é trazer a história do povo yanomami, o coração do povo yanomami, a alma do povo yanomami”, disse Ɨramari em entrevista ao Omelete.Filme é a arma do yanomami para flechar o coração da cidade, para eles entenderem como nós estamos vivendo na reserva yanomami. Estou falando o nome do povo yanomami, a luta yanomami defendendo a mãe-Terra. Não estou aqui passeando. Não sou turista. Vim aqui para falar para o público o que estou sentindo. Tenho muita preocupação com meu povo yanomami, principalmente o território yanomami está sendo destruído por invasores, os garimpeiros.”

Além de exibir os filmes, Ɨramari deu uma masterclass ao lado dos produtores Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha para alertar o mundo sobre os perigos enfrentados pelo seu povo. Nos últimos anos a Terra Indígena Yanomami e suas 30 mil pessoas vêm sendo ameaçadas pela invasão dos garimpeiros, que contaminam os rios com mercúrio, espalham doenças e geram insegurança alimentar. No governo anterior, 570 crianças yanomami morreram. No início do ano, o atual presidente declarou uma emergência de saúde para o povo yanomami.

Tem Brasil também na seção Venice Immersive, para filmes de realidade virtual e aumentada. Finalmente Eu, de Marcio Sal, participa da competição. Já Queen Utopia: Act I Cruising, de Lui Avallos, e Origem, de Emilia Sánchez Chiquetti, passam fora de competição.