No mês passado, A Paixão Segundo G.H. chegou aos cinemas transformando o fluxo de consciência da obra de Clarice Lispector em uma espécie de álbum audiovisual em que Maria Fernanda Cândido encarnava uma feminilidade específica que passeava por várias “feminilidades” cinematográficas. A abordagem ousada do diretor Luiz Fernando Carvalho para “adaptar o inadaptável” foi o foco de muito do discurso em torno do longa, e a obra que ele e seus parceiros criativos construíram é certamente admirável - mas, ao rever A Hora da Estrela (1985), que retorna hoje (16) aos cinemas em restauração digitalizada pelas mãos da Sessão Vitrine Petrobras, é flagrante como Suzana Amaral chegou lá de forma muito mais orgânica e (de certa forma) corajosa… quase 40 anos antes.
Verdade que A Hora da Estrela é uma obra um tanto mais acessível que G.H., apoiada em um estilo menos descritivo, uma terceira pessoa que - apesar de frequentemente melodramática - não mergulha tão fundo nos redemoinhos e tangentes reflexivos do outro livro. Não à toa, se tornou a história mais emblemática de Lispector, e o primeiro contato de muitos jovens com a autora. Mas ainda é um livro difícil, e Amaral (com seu corroteirista Alfredo Oroz) toma algumas decisões logo de cara que mostram a audácia de sua abordagem. Primeiro, ela se livra do narrador masculino, que Lispector coloriu de desdém justamente porque buscava marcar a alterização forçada do feminino.
De certa maneira, é a própria câmera de Amaral quem assume o papel do narrador nesta versão cinematográfica da história. Quando abre o filme no plano de um gato miando, isolado no cenário; quando filma Glória (Tamara Taxman) - a colega de trabalho desbocada da protagonista Macabéa (Marcelia Cartaxo) - de costas falando com o chefe, o decote interminável revelando o corpo anguloso; quando encena e observa o ócio organizado de Macabéa e suas três colegas de quarto em uma pensão paulistana… este é um A Hora da Estrela visto de dentro, que dispensa a marcação cruel do masculino porque entende que a fisicalidade do cinema, e especialmente do cinema de Amaral, é o bastante para observar a separação social entre os gêneros.
Daí também a genialidade da Macabéa de Cartaxo. O desafio dela é considerável: segurar nossa atenção e simpatia interpretando uma personagem cuja falta de traços marcantes é… bom, o seu traço mais marcante. Clarice construiu Macabéa como a heroína da mulher comum num sentido muito mais profundo do que isso normalmente significa para as narrativas condescendentes sobre a classe baixa - aos 19 anos, virgem, criada na rédea curta pela tia, com pouco estudo e ainda menos consciência da própria identidade. Mas há algo na sua hesitação e na sua busca, na sua curiosidade e no seu medo, que faz dela uma espécie de anti-protagonista elemental. Nós a entendemos não porque sua falta de definição facilita que nos espelhemos nela, mas porque sua falta de definição é a nossa também, em uma dimensão ou outra.
Cartaxo acerta, portanto, quando rejeita a ideia de uma Macabéa anestesiada para o mundo, quadro branco para a invenção e a manipulação de terceiros. Ao invés disso, ela ataca cada uma das emoções da trama com vontade, postulando que a ingenuidade da personagem só a faz mais propensa a mergulhar nessas emoções com mais abandono. Em muitos sentidos, a tragédia de Macabéa não é não saber quem é - de fato, sua tragédia é acreditar nas possibilidades impossíveis de um mundo com o qual ela não sabe negociar. Tanto é assim que o golpe final de genialidade do filme de Amaral é justamente abraçar o que há de mais cruel no terceiro ato de A Hora da Estrela.
Entra em cena a cartomante charlatona vivida por Fernanda Montenegro, pintada com um sorriso de escárnio que os outros personagens reprimem quando lidam com a protagonista. A Glória, ela oferece mentiras úteis; a Macabéa, um conto de fadas inconsequente. No alívio eufórico que perpassa o rosto de Cartaxo, na perversão eletrônica de valsas românticas que ditam a trilha sonora estridente de Marcus Vinícius, na cenografia barroca que toma conta dos últimos cenários visitados pelo filme, na repetição maldosa da montagem de Edgar Moura, fixada nas expressões e estratagemas que acontecem ao redor de Macabéa… A Hora da Estrela abraça o cínico e o grotesco para criar um teatro de maldade que é tão falso quanto a empatia que se antecede a ele.
Entender o falso da narrativa, e a verdade que existe dentro dela, é chave para entender Clarice Lispector. Indo na contramão de G.H., A Hora da Estrela chegou no núcleo dessa constradição despindo a escritora de seus artifícios, ao invés de se apoiando neles. É um ato de coragem cinematográfica que segue excitante, quase meio século depois.