Mais uma produção com cara de Dogma 95 - situação e impressão que ganha mais reforço ainda por ser obra que vem da Dinamarca, país natal do movimento que se dizia "aquele que vinha para resgatar a pureza e a essência do cinema". À parte discutir novamente a sinceridade nas intenções dos criadores do movimento, que causou um certo rebuliço no meio dos cinéfilos e críticos mais engajados e atentos ao que passa ao seu redor - os que observam o cinema num aspecto mais amplo, mundial -, algumas más marcas parece que se fixaram de maneira quase indelével num grupo de observadores mais xiitas e de pouco bom humor. Além do Desejo (En Soap, 2006), então, dirigido pela quase novata Pernille Christensen, parece chegar propositalmente com o cheiro e as cores de seu país - e uma compreensão muito mais superficial do movimento inventado Lars Von Trier e Thomas Vinterberg - como bandeiras a serem defendidas a todo custo; inclusive com o sacrifício do bom cinema.
Quando as câmeras digitais passaram a ser utilizadas na confecção do cinema - isso muito recentemente - era evidente que seu maior mérito girava em torno do barateamento do filme. Junto com essa "vantagem", surgiu um leve e compreensível "modo trêmulo" nas imagens que assistíamos captadas através da nova técnica - o tamanho menor da câmera permitia uma utilização mais constante nas mãos, sem tripés, fato que imprimia maior dinâmica e urgência ao novo cinema que se apresentava sem cerimônia a nós com o Dogma. Bem, nesse filme da diretora Pernille, toda essa má compreensão daquele evento nascido no distante 1995 se faz cartão de visita, tão exageradamente e tão descaradamente que a vontade real foi a de sair correndo da sala de cinema, intenção que só não concretizei por dever de ofício.
A câmera treme e teima em escapar do objeto a ser focado. Existe uma narração atípica, que não deixa dúvida alguma se tratar de homenagem à trilogia iniciada com Dogville (2003), pelo teor afetadamente fabulesco assumido - no caso de Além do Desejo, a homenagem passa a ser explícita a Von Trier, mesmo devida e oficialmente afastado do movimento, num típico exemplo que desmascara uma compreensão equivocada das razões dele, anteriormente, e como tentativa de colocá-lo sobre um altar, para ser não questionado em suas opiniões e atitudes; afinal, estamos girando em trono de "dogmas".
en soap
en soap
A história? Ah, a história fala de uma mulher, Charlotte (Trine Dyrholm), madura em busca de uma nova vida, do seu relacionamento complexo com o novo vizinho, Veronica (David Dencik), transexual e depressivo - não, não estou afirmando que sejam condições que caminham paralelas, somente descrevendo as características do personagem - e das insitentes investidas do antigo, perdido e violento companheiro, Kristian (Frank Thiel).
A atuação sem nenhum tipo de expressividade alterada da personagem feminina principal - a mesma cara e os mesmos olhos "esbugalhadinhos" o tempo todo; o mesmo sorrisinho bobo, idem (parece egressa da escola de atuação "Adriana Estevez") -, tudo isso e mais aquele "pouco" que remete o trabalho àquela "compreendida" Dinamarca dogmática (produção também da Suécia), denunciam que um filme falso está entrando em cartaz. O próprio mote da história parece perdido e desvirtuado no tempo. Imagino que não precisemos desse tipo de cinema. Mais modestamente, então: eu não preciso desse tipo de cinema e não recomendaria a algum amigo (apesar de não ser função minha recomendar; somente alertar).
Cid Nader é editor do site cinequanon.art.br