Na batida do Pet Shop Boys, ao som de "Go West", a China se abre para o futuro pelas vias do pop no mais recente longa-metragem de um dos cineastas mais aclamados do mundo na atualidade: Jia Zhangke, de volta ao circuito brasileiro com o premiado drama As Montanhas Se Separam (Mountains May Depart), já em cartaz no circuito nacional. Envolvido hoje na promoção internacional de The Hedonists, uma comédia com tintas absurdas sobre desemprego, exibida em março no Beautiful – Hong Kong International Film Festival, o cineasta chinês faz uma mistura de melodrama, crônica social, poesia e documentário nesta produção que chega ao Brasil após um ano de espera, a contar de sua primeira projeção para o público, feita no Festival de Cannes de 2015.
“O dinheiro virou sinônimo de conforto nas sociedades do nosso tempo, sejam elas ocidentais ou orientais, e essa importância quase existencial que demos às trocas econômicas fizeram do consumismo uma espécie de discurso simbólico hegemônico”, disse Zhang-Ke ao Omelete em Cannes. “A minha ideia de futuro vem do desejo de refletir sobre o quanto o vício do consumo desenfreado é capaz de assombrar uma pessoa e mudar sua percepção afetiva ao longo dos anos, como se agisse como um fantasma. Em vários filmes meus, como Plataforma, por exemplo, eu tento falar sobre as sequelas do consumo desenfreado e do mal que a dependência excessiva ao poder do capital causa. Mas, neste caso, tentei fazer algo mais alegórico, que me permitisse dar à China hipóteses de entendimento sobre o que podemos nos tornar quando o Amanhã chegar”.
Galardoada com 11 prêmios conquistados mundo afora, As Montanhas Se Separam revive a realidade chinesa dos anos 1990 e avança até um 2025 de mentirinha. Durante esse período se dá um triângulo amoroso entre Thao (Zhao Tao) e dois homens, um rico (Jinsheng) e um pobre (Liang). Dos anos 1990 até meados de 2020, as trajetórias dos três vão se emaranhar, até dar lugar aos conflitos internos do filho de Tao, Dollar (Dong Zijang), que parte para a Austrália, falando inglês – a língua do “Oeste” cantado na canção dos Pet Shop Boys.
“Tenho a consciência de que muitos de meus filmes não podem ser exibidos em cinema no meu próprio país por conta da censura do governo. Eu te dou um exemplo: mesmo Um Toque de Pecado, que saiu premiado de Cannes por um júri presidido por Steven Spielberg, só circulou na China em DVDs piratas. Mas, apesar disso, eu ainda tenho muita liberdade criativa para filmar. Continuo sendo o autor integral dos meus filmes, o que me dá total liberdade para trafegar entre documentário e ficção ao abordar temas como histórias de amor”, explica o cineasta, que em 2014 virou tema do documentário Jia Zhang-Ke: O Homem de Fenyiang, do carioca Walter Salles. “Na trama de As Montanhas se Separam, a minha narrativa começa no fim dos anos 1990, período em que adquiri minha primeira câmera Mini-DV. Aquele brinquedo virou uma ferramento de trabalho e também de liberdade, pois me deu autonomia para filmar à vontade, sem preocupação com os custos que teria usando película. Gravei horas e horas das festas chinesas, retratando o agito dos jovens como eu acerca da virada do milênio. Aquelas imagens estão na tela, retrabalhadas. E as que eu não usei serviram de base para a encenação. Todo meu cinema se sustenta na observação ro real... no esforço de mostrar como as pessoas vivem no meu país, sem maquiagem”.